Arte e violência se autodestroem em Guerra da Porcelana

Vencedor do Grande Prêmio do Júri de Melhor Documentário no Festival de Cinema de Sundance também faz parte da seleção da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e é repleto de inconsistências morais

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Na Ucrânia em guerra desde a invasão russa no país iniciada em 2022, Guerra da Porcelana se apresenta como um filme sobre as dificuldades de viver da arte em tempos de conflito. Dentro do cotidiano de Slava Leontyev e Anya Stasenko, entretanto, o documentário entrega contraste nada sutis ao retratar a mudança da realidade que o círculo do casal de artesãos vive em meio à guerra. 

O conflito, militar para a Rússia e civil para a Ucrânia, obriga uma reorganização social e novas disposições de papéis. De repente, pincéis se transformam em armas, e peças de porcelana, em granadas. A natureza que os inspirava é hoje zona de camuflagem e instaura-se uma nova dinâmica, onde o ambiente de criação de belos adornos inspirados em figuras da natureza e do folclore ucraniano exige que seus artistas empreguem suas habilidades na linha de frente do confronto. 

Uma observação no início do filme informa que a maioria das imagens ali mostradas foram feitas, em sua maioria, pelos próprios personagens – o que, provavelmente, justifica o nome de Slava Leontyev na direção (Foto: Submarine Entertainment)

Isso não é um dilema para Guerra da Porcelana, no entanto. Slava e Anya parecem muito familiarizados e até conformados com o novo cotidiano, e as consequências psíquicas, o primeiro dos objetos de análise dos filmes de guerra, são abafados pelo contraste entre a beleza do ofício da arte e a violência do ofício da militar. A perigosa aura honrosa da guerra é o primeiro dos elementos a prejudicar o filme, que também sofre com a perspectiva de um de seus diretores, o próprio Slava.

Aliado no conflito e na arte, o co-diretor estadunidense Brendan Bellomo também não se incomoda com o vácuo psicológico do documentário. Assim, o efeito é um tanto estranho, quase como se o filme quisesse justificar o olhar unidimensional que confere aos seus próprios personagens, que vão de meros civis a soldados não-profissionais em um piscar de olhos. O que os prende não parece ser a dinâmica do conflito, mas o próprio documentário. 

No Festival de Sundance, o documentário competiu com títulos como Daughters e Sugarcane, que se colocam à frente na corrida ao Oscar 2025 na categoria do gênero (Foto: Submarine Entertainment)

A mera restrição de se viver em meio à beleza da natureza transformando-a em arte já é um pressuposto de aprofundamento. Mas nada surge além das metáforas sobre o caráter delicado e permanente da matéria-prima de Slava e Anya em comparação à condição do conflito e ao patriotismo ucraniana. Isto é, exceto por correlações mais perigosas que isso, como quando Anya usa a sua arte para ilustrar e camuflar um drone explosivo.

O adversário é muito mais condenável, mas Guerra da Porcelana peca ao sugerir uma militarização justificada pelo amor à pátria, a violência equilibrada pela beleza e o paralelo da criação de obras de destruição. Slava e Anya se tornam nada além de artistas militarizados por um filme mais preocupado em defender um conflito do que seus patriados. Faça arte na guerra, e assim faça da guerra uma arte. 

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