Depois da renascença que induziu à própria carreira na metade da década de 2010, M. Night Shyamalan também se libertou de algozes passados. Isto é, a necessidade e a cilada de escrever com uma virada mirabolante às vésperas da conclusão dos filmes. Com Armadilha, ele amadurece um Cinema de ação e reação, mudando a lógica de perigo que circula dramas de suspense.
O roteiro não tenta esconder a identidade de Cooper (Josh Hartnett), um pai de família que leva a filha Riley (Ariel Donoghue) a um show esgotadíssimo e badalado. Trata-se de uma mega investida policial, que tenta prender um assassino cruel e ardiloso, codinome Açougueiro, que irá ao evento. Já ligou os pontos? Não importa, pois Shyamalan filma a claustrofobia como uma comédia de erros; com uma única mudança: o protagonista – e cara malvado – só sabe acertar.
Ele usa o caos do evento à seu favor, brincando nos bastidores. De uma mulher quase inconsciente, encontra distração. De um trabalhador amigável e língua solta, descobre informações mais do que úteis. E da filha inocente, canaliza os meios para sair batido do estádio, abarrotado de agentes da polícia militar, de oficiais do FBI e de uma chefona que desperta nele traumas de origem familiar.
Claro que Trap, por se tratar de um filho do talentosíssimo e hábil Shyamalan, não esquece de se divertir. Afinal, estamos no show da Lady Raven, a estrela pop do momento, e ídolo de uma porção inestimável de jovens e crianças. Seu longo espetáculo é decupado com paciência e jogo de cintura, com a câmera do tailandês Sayombhu Mukdeeprom (de Rivais e Grand Tour) reinventando-se em ângulos e cortes.
Assistir à Lady Raven fica em segundo plano, mas o dinamismo técnico não passa despercebido. Aqui, Shyamalan usa muito do real para brincar com o lúdico. Ele grava o filme “na ordem”, e só aproxima a câmera – e o público – do luxuoso palco, quando os personagens de fato caminham até lá. Antecipação e ansiedade estão na ponta da língua de Cooper e Riley, obviamente por razões contrárias.
Ela vive uma experiência marcante – “sua filha vai lembrar desse dia para sempre”, confidencia uma das assistentes de palco, quando Riley dança nos holofotes ao lado da artista. O convite acontece em cima de algumas mentiras do pai, que coloca a garota para realizar um sonho, e ele às portas de uma saída do tumultuado local.
Os temas de paternidade e o elo entre o homem e sua filha estão impressos em cada minuto de Armadilha. Quem interpreta Lady Raven é Saleka Shyamalan, uma das proles do diretor, que catapulta sua carreira de cantora e entrega a ela um texto delicioso de ser aprendido e declamado. Em especial nas cenas de trocas individuais, a jovem atriz estreia na Sétima Arte ao melhor estilo nepobaby. Aquela que tem talento para bancar o nepotismo.
E se Hartnett conseguiu o papel por compartilhar o traço “pai de menina” com o diretor, seu desempenho tragicômico faz de Trap a exata transmutação da ideia original: o que aconteceria se O Silêncio dos Inocentes tomasse parte no show da Taylor Swift? A resposta está nas quase duas horas de reinvenções, novas ideias, um pouquinho de medo e um montão de dominós caindo à perfeição.
M. Night Shyamalan, um obsessor por natureza, eterniza como pais e filhos podem viver dois dias completamente diferentes, compartilhando o presente que chega com segundas intenções. A violência implícita pega leve na censura, enquanto Hartnett distribui truques com os pobres coitados que acham estar curtindo ou trabalhando num dia qualquer. A difícil tarefa de ter o público à frente dos personagens é evitada com a parcimônia do diretor, sarcástico até o último fio de cabelo.
“Tem um fantasma na sua casa”, canta em tom de denúncia uma destemida e apavorada Lady Raven, enquanto Cooper faz jogo duplo. Para a família, ele sorri e grava o momento saído diretamente dos sonhos da filha. Para si, e para quem assiste, o monstro se contorce nas sobrancelhas crivadas de tensão e no sorriso mentiroso e matador. Armadilha vai ao passado dos lares quebrados e, na tentativa de findar um ciclo de podridão e ressentimento, ressuscita cicatrizes e mancha para sempre o que deveria ter sido uma noite de diversão e algazarra musical.
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