Armadilha: andou na prancha, cuidado Shyamalan vai te pegar

No show da maior artista pop da atualidade, Josh Hartnett é “tiozão gostoso” com muito a esconder

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Depois da renascença que induziu à própria carreira na metade da década de 2010, M. Night Shyamalan também se libertou de algozes passados. Isto é, a necessidade e a cilada de escrever com uma virada mirabolante às vésperas da conclusão dos filmes. Com Armadilha, ele amadurece um Cinema de ação e reação, mudando a lógica de perigo que circula dramas de suspense.

O roteiro não tenta esconder a identidade de Cooper (Josh Hartnett), um pai de família que leva a filha Riley (Ariel Donoghue) a um show esgotadíssimo e badalado. Trata-se de uma mega investida policial, que tenta prender um assassino cruel e ardiloso, codinome Açougueiro, que irá ao evento. Já ligou os pontos? Não importa, pois Shyamalan filma a claustrofobia como uma comédia de erros; com uma única mudança: o protagonista – e cara malvado – só sabe acertar.

Ano do papai Shyamalan, que além de escalar a filha Saleka no papel da cantora pop, produziu para a outra filha, Ishana, diretora de Os Observadores (Foto: Warner Bros.)

Ele usa o caos do evento à seu favor, brincando nos bastidores. De uma mulher quase inconsciente, encontra distração. De um trabalhador amigável e língua solta, descobre informações mais do que úteis. E da filha inocente, canaliza os meios para sair batido do estádio, abarrotado de agentes da polícia militar, de oficiais do FBI e de uma chefona que desperta nele traumas de origem familiar.

Claro que Trap, por se tratar de um filho do talentosíssimo e hábil Shyamalan, não esquece de se divertir. Afinal, estamos no show da Lady Raven, a estrela pop do momento, e ídolo de uma porção inestimável de jovens e crianças. Seu longo espetáculo é decupado com paciência e jogo de cintura, com a câmera do tailandês Sayombhu Mukdeeprom (de Rivais e Grand Tour) reinventando-se em ângulos e cortes.

A veterana Hayley Mills, que interpreta a agente Grant, fez fama nos anos 60, estrelando The Parent Trap, de onde Armadilha puxa o título e a ideia de uma trama intrinsecamente familiar (Foto: Warner Bros.)

Assistir à Lady Raven fica em segundo plano, mas o dinamismo técnico não passa despercebido. Aqui, Shyamalan usa muito do real para brincar com o lúdico. Ele grava o filme “na ordem”, e só aproxima a câmera – e o público – do luxuoso palco, quando os personagens de fato caminham até lá. Antecipação e ansiedade estão na ponta da língua de Cooper e Riley, obviamente por razões contrárias.

Ela vive uma experiência marcante“sua filha vai lembrar desse dia para sempre”, confidencia uma das assistentes de palco, quando Riley dança nos holofotes ao lado da artista. O convite acontece em cima de algumas mentiras do pai, que coloca a garota para realizar um sonho, e ele às portas de uma saída do tumultuado local.

Em papel coadjuvante, Alison Pill vive – mais uma vez – a esposa de alguém com terríveis segredos (Foto: Warner Bros.)

Os temas de paternidade e o elo entre o homem e sua filha estão impressos em cada minuto de Armadilha. Quem interpreta Lady Raven é Saleka Shyamalan, uma das proles do diretor, que catapulta sua carreira de cantora e entrega a ela um texto delicioso de ser aprendido e declamado. Em especial nas cenas de trocas individuais, a jovem atriz estreia na Sétima Arte ao melhor estilo nepobaby. Aquela que tem talento para bancar o nepotismo.

E se Hartnett conseguiu o papel por compartilhar o traço “pai de menina” com o diretor, seu desempenho tragicômico faz de Trap a exata transmutação da ideia original: o que aconteceria se O Silêncio dos Inocentes tomasse parte no show da Taylor Swift? A resposta está nas quase duas horas de reinvenções, novas ideias, um pouquinho de medo e um montão de dominós caindo à perfeição.

Jonathan Langdon rouba a cena como o funcionário que faz amizade rápido demais com o protagonista (Foto: Warner Bros.)

M. Night Shyamalan, um obsessor por natureza, eterniza como pais e filhos podem viver dois dias completamente diferentes, compartilhando o presente que chega com segundas intenções. A violência implícita pega leve na censura, enquanto Hartnett distribui truques com os pobres coitados que acham estar curtindo ou trabalhando num dia qualquer. A difícil tarefa de ter o público à frente dos personagens é evitada com a parcimônia do diretor, sarcástico até o último fio de cabelo.

“Tem um fantasma na sua casa”, canta em tom de denúncia uma destemida e apavorada Lady Raven, enquanto Cooper faz jogo duplo. Para a família, ele sorri e grava o momento saído diretamente dos sonhos da filha. Para si, e para quem assiste, o monstro se contorce nas sobrancelhas crivadas de tensão e no sorriso mentiroso e matador. Armadilha vai ao passado dos lares quebrados e, na tentativa de findar um ciclo de podridão e ressentimento, ressuscita cicatrizes e mancha para sempre o que deveria ter sido uma noite de diversão e algazarra musical. 

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