Adjetivos não dão conta deste Ripley

Com Andrew Scott em estado de mania, são 13 indicações ao Emmy 2024 para a minissérie que quase não foi lançada

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Cortiço é elogio para onde mora Tom Ripley (Andrew Scott). Na parte esquecida de Nova Iorque, o prédio tem defeitos mil; o ralo do chuveiro prefere vomitar a água absorvida, ao invés de sugá-la; a porta não tranca direito; e o vai-e-vem de pessoas torna a poluição sonora em batida constante. Não surpreende que, quando oferecido com a possibilidade de viajar para a Europa com tudo pago, ele aceite sem piscar.

Mas não se engane, este Tom Ripley não tem a juventude ou a ingenuidade que Matt Damon imprimiu em sua versão para o cinema. Aqui, Andrew Scott faz valer a idade e a experiência, num retrato volátil e taciturno do personagem criado por Patricia Highsmith, nos romances adaptados pelo cineasta Steven Zaillian. O vigarista calcula os movimentos e reações, assim como se prepara até para o imprevisível.

Steven Zaillian venceu o Oscar por A Lista de Schindler e tem crédito nos roteiros de O Irlandês, Moneyball, Gangues de Nova York e Missão: Impossível (Foto: Netflix)

Com toques do drama noir e bêbada na câmera preto-e-branco de Robert Elswit, Ripley não busca agilidade ou concisão. Ao longo de oito episódios, a minissérie da Netflix estuda a psique de um maníaco por controle que voa perto demais do Sol. Não é coincidência que as pinturas de Caravaggio sejam tanto obsessão como temor.

Entre o claro e o escuro, Zaillian escreve e dirige a totalidade da produção, misturando o barroco dos quadros com o suspense do movimento. Chegando na cidade de Atrani, na costa de uma Itália pacata e longínqua do cenário de guerra, Ripley encontra quem diz ser um velho conhecido: o herdeiro Dick Greenleaf (papel de Johnny Flynn), a quem o americano vai chupar como sanguessuga.

No Emmy 2024, a categoria de Ator em Minissérie tem maioria em personagens queer, vividos, em sua maioria, por homens da comunidade; as séries representadas são Ripley, Companheiros de Viagem, Bebê Rena e Feud (Foto: Netflix)

Muito inteligente e vivido, Scott brinca de monstro quando interage com os seres paralelos a Dickie, alguém que desperta nele sentimentos vorazes demais para serem definidos. “Eu não sou bicha”, arremata o filhinho de papai, que desconversa qualquer sentimento impuro que Ripley poderia nutrir por ele. O protagonista prontamente concorda, negando a natureza.

Há algo de perverso e obtuso na representação da obra de Highsmith, que já teve meia dúzia de versões e continua inspirando uma porção de outras derivações. O que Zaillian planeja, porém, é brindar uma trama já explorada e difundida, com batidas originais. Seja nas locações, que passeiam por praias, longas escadarias e igrejas chiquérrimas, até o elenco, majoritariamente italiano – e que desata a dialogar no idioma local.

O impulso de Tom Ripley está escondido no subtexto: ao matar esses homens, ele assassina a própria sexualidade; primeiro com quem o atiça, e depois com quem goza dos privilégios a ele negados (Foto: Netflix)

Scott aprende sua parcela da língua e convence como um turista apaixonado pelo destino. Johnny Flynn penteia o cabelo à lá Christopher Nolan, e encarna um Dickie menos tesudo que a versão cristalizada de Jude Law, embora igualmente fascinante. A terceira vértice da relação está em posse de Dakota Fanning, habilmente silenciosa e observativa como uma Marge em estado de erosão.

Cada comentário escondido em crítica e desafeto trocado por ela com Ripley é encenado como manda o manual: de forma direta e sem rodeios. A atriz, que começou a carreira jovem e vive uma renascença nos papéis distantes do tablado adolescente, faz de Marge uma mulher própria, equidistante da figura masculina que acompanha e cede amor e moradia, e alguém devastada pela possibilidade de ter seu paraíso litorâneo arrancado por um sagaz e egoísta Ripley.

Ripley pega emprestado telas de Caravaggio, enquanto usa de artifícios do terror da década de 30 para amedrontar quem assiste (Foto: Netflix)

Talentoso até dizer chega, Andrew Scott guarda os ressentimentos e a saliva de poder e dinheiro no bolso de trás, emulando emoções displicentes ao passo que o cerco fecha. Quando a série ultrapassa o relacionamento de Ripley e Dickie, isolando o protagonista de seus conterrâneos, é aí que o verdadeiro espetáculo começa, e as garras saem do modo de segurança.

Com um time de coadjuvantes destemidos quando colocados frente ao matador silencioso, a série escala uma gama de talentos. Freddie (Eliot Sumner) dá nos nervos; a Signora Buffy (Margherita Buy) transforma-se em aliada senciente; e o Inspetor Ravini (Maurizio Lombardi) coça a sarna até que a pele se rompa em grandes golfadas de sangue. Até mesmo pequenas intermissões, caso dos papéis de Kenneth Lonergan, John Malkovich e Louis Hofmann, desafogam o escopo narrativo e se curvam aos canastrão senso de humor de Ripley.

Andrew Scott é o sexto ator a viver Tom Ripley, depois de Alain Delon, Dennis Hopper, Matt Damon, John Malkovich e Barry Pepper (Foto: Netflix)

Ripley foi engavetada pela emissora original, o Showtime, e quase parou no tártaro criativo. A Netflix bancou a aposta e fez valer o investimento, com 13 indicações ao Emmy, incluindo Melhor Minissérie, Ator para Scott, Atriz Coadjuvante para Fanning, e Roteiro e Direção para Steven Zaillian. Nas técnicas, o show disputa em Montagem, Design de Produção, Som, Figurino, Efeitos, Fotografia e Direção de Elenco; todos atributos afiados que fazem desta leitura do personagem um bem-vindo mergulho nas trevas europeias.

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