No período entressafras da HBO, chegou o momento de A Idade Dourada, drama de época que reconstrói a Nova Iorque dos anos 1800 com um toque de acidez e perspicácia. A criação é de Julian Fellowes, de Downton Abbey, um especialista na sutil arte da sociedade de riquezas em um país ainda ebulindo as mudanças. Aqui, a Guerra Civil Americana acabou há pouco, e a metrópole é montada com cautela e precisão.
A parcela de senhores e senhoras da “Velha América” esnoba e deixa os recém-chegados de lado, mesmo que morem na casa da frente. É o caso das famílias protagonistas: os Van Rhijn não querem aceitar a ascensão dos Russell, que buscam seu lugar ao Sol, oferecendo o melhor que o dinheiro tem à mercê. Na temporada inicial, Marian Brook (Louisa Jacobson) mantém-se apartada dos costumes da tia, Agnes (Christine Baranski).
Do lado de lá, a ambiciosa Bertha Russell (Carrie Coon) ajoelha no milho e enfim consegue um resquício de reconhecimento e respeito do pavilhão mais antigo da sociedade. The Gilded Age começa assim: a guerra entre ricos e ricaços é tão envolvente que não se demora a desdobrar acontecimentos bombásticos e dignos de folhetim.
Não é por acaso que a série seja definida pela metamorfose na relação dos personagens. O roteiro de Fellowes, que ganha amparo de Sonja Warfield na segunda temporada, engatilha e atira: pazes, brigas, intrigas políticas, romances proibidos e até uma criada que, demitida, volta à cena na posição de lady.
A riqueza do material, que cai como luva nos lábios do elenco, seja ele representativo da elite ou do proletariado, está na concisão da história, que se expande sem receios de perder o fôlego. É tarefa complicada definir ou sublinhar os pormenores de uma série que reinventa suas bases a cada semana, especialmente na temporada que começa com uma guerra na ópera e ainda encontra tempo para mostrar o racismo no Sul americano e os protestos trabalhistas nas fábricas.
Sem vilões ou heróis de cabeça fraca, todos são peças-chave para o que se tornará a América do Norte antes das grandes guerras. Carrie Coon concorre ao Emmy 2024 de Melhor Atriz, constantemente dando a sua Bertha uma camada de frieza; a falsa proteção que lhe escapa do controle justamente no episódio que submeteu: Head to Head, quando a esposa recebe confidências da criada que tentou seduzir seu marido.
Daí, a fantástica relação de parceria e amor entre Bertha e George (Morgan Spector) passa pela maior de suas fissuras. À prova de que a fidelidade é maior do que o sentimento de traição, ela movimenta os próprios pauzinhos e faz questão de assegurar que o lado da família, focada na abertura do novo teatro de ópera, seja a prioridade. O magnata, influente em termos de palavra e cheques, cumpre sua parte do acordo.
Enfrentando os iminentes protestos que darão partida em greves em suas fábricas, George visita o líder sindical e argumenta. Ele perde, como a História mostra, mas A Idade Dourada não dispensa a tensão; igualmente disposta na verossimilhança, as questões raciais no Sul do país estão no foco de Peggy Scott (Denée Benton), jornalista negra que se levanta após a morte do filho que lhe foi tirado dos braços e agora foca em escrever em prol da comunidade.
Na residência dos Van Rhijn, Agnes coloca Christine Baranski na disputa pelo Emmy de Atriz Coadjuvante, em uma jornada de egoísmo e esmero que revela como a idosa, sem marido e prestes a ver a irmã sair de casa, é tão frágil como as pessoas que critica. Ada (Cynthia Nixon), sensível e doce, focaliza seus anseios no amor que encontra na chegada do reverendo Forte (Robert Sean Leonard). Para eles, um segundo de felicidade é precedido pela maior das tragédias.
E o filho de Agnes, o herdeiro Oscar (Blake Ritson), refém do tempo que passa e escancara a falta de esposa – e na tentativa de manutenção do romance proibido que mantém com o charmoso John Adams (Claybourne Elder), busca fisgar a herdeira mais cobiçada do local. Para seu azar, e a surpresa de ninguém, o negócio resulta em prejuízo. Com a recusa do casamento com Gladys Russell (Taissa Farmiga), os jovens estão cada vez mais perdidos nas normas e nos pedidos formais dos mais velhos.
Larry Russell (Harry Richardson) vive um caso de amor passageiro com uma mulher mais velha (a estonteante Laura Benanti), e enxerga a tristeza tomar conta quando a mãe não só proíbe, mas também afasta os dois. Os sonhos de ser arquiteto, porém, continuam à todo vapor, com a inclusão da histórica Emily Warren Roebling, engenheira mulher que desafiou as regras da época e trabalhou na inauguração da Ponte do Brooklyn.
Renegando o status arcaico que poderia advir da ambientação, The Gilded Age se dedica na manufatura dos personagens complexos e com os quais sonhamos em conhecer. Na força-tarefa dos Van Rhijn, o mordomo Bannister (Simon Jones) finda uma richa e o ajudante Jack (Ben Ahlers) sonha com a possibilidade de patentear um mecanismo nos despertadores; a cozinheira Srta. Bauer (Kristine Nielsen) encanta pelos conselhos e a criada Bridget (Taylor Richardson) cresce com as responsabilidades.
Já do outro lado da rua, o mordomo Church (Jack Gilpin) é alvo de simpatia e compaixão, o chef Sr. Borden (Douglas Sills) ensaia um amor pela Música com a governanta Srta. Bruce (Celia Keenan-Bolger), e o observativo e educado lacaio Watson (Michael Cerveris) precisa encarar o passado a fim de saldar dívidas inegociáveis.
Com esmero e carinho, The Gilded Age encontra espaço na tumultuada grade da HBO, representando a emissora na categoria de Melhor Drama no Emmy 2024 – a série ganhou na indicação solitária de Design de Produção pela season 1, e agora disputa outros seis prêmios. Improvável de vencer o troféu, a criação de Julian Fellowes é a delícia escondida entre os dragões, os bilionários de férias e os infectados; tem, também, a voracidade no texto e o olhar delicado sobre temas inerentes ao calendário, que merecia mais mídia, mais louros e, com certeza, todos os troféus.
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