À época a capital da Índia, a cidade de Calcutá estava imersa no fluxo constante de pessoas, mercadorias e barulho. Não é o caso da rotina de Charulata (Madhabi Mukherjee), jovem mulher que se divide entre os afazeres mais banais da mansão vitoriana em que mora, de bordados à confecção de chinelos, e às atenções para o marido, dono de um emergente jornal político.
A Esposa Solitária, que no título internacional ganha o nome da protagonista, começa apreciando a solidão e a liberdade da mulher em 1891. Ela mata o tempo jogando cartas com uma amiga, dá ordens para o criado e observa, com os estilosos binóculos, o movimento por detrás das árvores que cercam o palácio. Com Bhupati (Sailen Mukherjee), a relação é frutífera, embora distante.
Ao passo que ele divaga sobre as questões do governo britânico, sempre atento aos acontecimentos no Velho Continente, acaba por ignorar parte das paixões e desejos dela. Principalmente escrever, já que a Literatura é mais do que um passatempo e ocupa sua cabeça e coração. Quando Amal (Soumitra Chatterjee), primo do marido e estudante do ramo, chega ao local, Charulata passa a ser desafiada de maneira inédita.
Com o “cunhado” de consideração, ela desata a debater as obras que enfeitam as dezenas de prateleiras. Melhor ainda: vai ao jardim, brincar de viver quando balança e ouve o que o jovem tem a dizer. Incentiva-o a escrever, mas ao mesmo tempo mantém a importância no futuro, insistindo para que ele leve a sério o assunto do vindouro casamento arranjado.
Averso à ideia de trabalhar e casar, Amal é submetido à possibilidade de viver fora, aproveitar a Europa e contribuir para o trabalho do primo. Charulata, refém da posição social a que nasceu, experencia na carne sentimentos tão avessos quanto novíssimos. Quer tocar o amor que sente pelo terceiro, tão próximo do que ela própria considera digno; tampouco deseja trair a confiança do esposo, de quem ama e por quem zela.
O filme de Satyajit Ray, que integra tanto a Retrospectiva do cineasta como o Foco Índia da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma das seis produções que ganham exibição do realizador, o mais famoso representante do país ao público ocidental. Com todos os elementos já consolidados de sua obra, com melodrama, grandes tomadas que capturam as emoções da queima do pavio até a fumaça e uma performance arrebatadora da protagonista, A Esposa Solitária se consolida numa cápsula do tempo.
Satyajit Ray não diminui a força ou a identidade de Charulata, nem a renega ao papel de cartório que intitula a obra. Ela é completa e sonhadora, é destemida e talentosa. Quando um texto de sua autoria aparece nas páginas da revista rival do marido, ele recebe a notícia com o brilho que canaliza na torcida pelo sucesso da esposa. O amor, objeto de admiração e receio para todos naquela hierarquizada cadeia de funções, é quem desestabiliza as estruturas, tão volátil e feroz, rugindo para aqueles que nem ao menos suspeitavam da maleabilidade de seu alicerce.
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