A culpa carcome e liberta na 2ª temporada de Six Feet Under

Expandindo a mitologia mortuária, drama da HBO caminha entre uma família redescoberta

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Com recepção mais do que positiva, a renovação de Six Feet Under foi engatilhada com a rápida produção da 2ª temporada. Com as cartas postas, a família Fisher passaria por treze semanas de encontros sentimentais e acontecimentos pesarosos na rotina da funerária e também fora dela. Na intersecção da vida com a morte, o criador Alan Ball coloca cada personagem numa batalha incessante por controle.

Comecemos por um dos centros da narrativa: Nate (Peter Krause). Do diagnóstico prematuro de uma mancha no cérebro que poderia causar morte precoce por aneurisma, o primogênito da família perpassa pelo passado numa emancipação das expectativas que a vida, e os irmãos e pais, criaram para ele. Ao lado de David, cria um vínculo mais profundo do que nunca.

Ao lado de Claire, desempenha o papel paterno que tanto fez falta na vida adulta, e ao lado da mãe, torna-se garotinho ao encarar o abismo da doença. Mas é com a namorada, e futura noiva, Brenda (Rachel Griffiths), que Nate protagoniza os maiores eventos da temporada. Ela, cada vez mais afastada do núcleo romântico, vive um espiral de traições e compulsões sexuais às costas dele.

A amizade com Melissa, trabalhadora do sexo que conhece Brenda através de suas massagens, desperta nela uma epifania que resulta no precipitado pedido de casamento (Foto: HBO)

Na companhia da cliente-transformada-em-amiga Melissa (Kellie Waymire, que morreu pouco tempo depois da produção), o arco quase religioso de Brenda é parte da aresta asquerosa da personalidade humana que a série se impõe em enxergar e, mais forte ainda, adentrar. Mas Nate não sai impune: na figura de Lisa (Lili Taylor), ex-namorada de Seattle, ele abre-se para uma intimidade desconhecida de Brenda e planta uma semente impossível de ser esquecida ou deixada de lado.

O casal é veículo para duas interpretações vorazes e afiadas, que culminam na briga do episódio 12, quando tudo atinge o ventilador e a alcunha de Brenda (“a cunt from hell”) adquire verdades demais para soar falsa. Até mesmo antes, nas constantes interferência da mãe Margaret (Joanna Cassidy) e sua eterna crise de ego e atenção, Brenda esfarela e deixa de ser uma pessoa inteira.

Crescendo da figura infanto-juvenil que foi apresentada, Claire Fisher sai do Ensino Médio e dá os primeiros passos na Faculdade de Artes (Foto: HBO)

A presença de Billy (Jeremy Sisto), o irmão que foi internado após um ataque psicótico na temporada 1, acende os piores instintos na massagista, que não desvia da destruição provocada pela infância traumática e a rotina de mentiras que mantém a qualquer custo. Claire (Lauren Ambrose) flerta com a possibilidade de abraçar o mesmo destino, mas muda o guidão e ruma para estradas menos tortuosas.

A relação natimorta com Gabriel (Eric Balfour) é substituída pela chegada da tia Sarah (Patricia Clarkson, vencedora do Emmy pelo papel) e a inevitável recauchutagem de rota que a jovem faz da própria vida e da figura da mãe. Em Sarah, um esboço do que Ruth poderia ter sido e do que, pelas forças do destino, acabou desviando. Os episódios de embate entre Clarkson e Frances Conroy são mais do que fantásticos, caindo no território de drama digno do horário nobre da HBO.

No Emmy 2002, quando a série concorreu pelas duas primeiras temporadas, Patricia Clarkson venceu em competição direta com outras duas atrizes da casa: Lili Taylor e Illeana Douglas (Foto: HBO)

Culpa e ressentimento borbulham em todos os cômodos da grande casa dos Fisher, que à certa altura recebe a moradia temporária de Nikolai (Ed O’Ross), patrão e namorado de Ruth que tem as pernas quebradas em uma cobrança de dívida e prova mais do que deveria da hospitalidade de amada. No trágico arco de libertação, Frances Conroy apanha mais do que cachorro malcriado até que enfim coloque em prática o plano que aprendeu no curso milagroso.

Chamado de The Plan, a ideia é “reconstruir” as relações e os comportamentos mais próximos, numa metáfora que Ruth repete até ela mesma cansar-se de ouvir. Fato é que, ao completar do décimo terceiro episódio, muito mudou na fundação da mulher, que enxerga a vida além de um estado de depressão avantajado pela perda do marido, pela distância dos filhos, o amargor da irmã e a incerteza de um relacionamento desigual.

A morte do patriarca causa uma sensação angustiante de reset na família, que precisa encontrar maneiras de evoluir longe da presença dele (Foto: HBO)

A promoção para avó faz bem e revitaliza sua alma, mais uma vez elevada pelo trabalho da atriz veterana, perfeita nas cenas em que fala alto e sai do recinto pisando forte e sem acreditar no que ouviu. Pela primeira vez em anos, ela abdica do posto coadjuvante e vira protagonista da vida que quer viver, antes esposa, mãe e agora vovó. E a pequena Maya é quem sai ganhando na coisa toda.

Ainda no campo infantil, a chegada da sobrinha de Keith (Mathew St. Patrick) é conturbada e desperta nele o combustível para largar o atual namorado e construir ao lado de David (Michael C. Hall) a vida que eles nunca acreditaram ser viável. No caminho, o obstáculo de uma criação violenta, instintos de agressividade, a homofobia do pai e o vício da irmã Karla (Nicki Micheaux) transformam a rotina do casal em campo minado.

Cada vez mais em harmonia ao estado de catarse e medo que a morte desperta nas pessoas, a temporada conta com aparições frequentes do personagem de Richard Jenkins. Ele joga cartas com a Vida (Cleo King) e a Morte (Stanley Kamel) e convida Nate para uma rodada. Depois, no episódio de Natal, a família relembra os momentos finais compartilhados com o pai, e a simpatia e o luto do começo da série amadurecem à velocidade dos acontecimentos.

Anos antes de Parks and Recreation, Adam Scott deu o ar da graça em dois episódios de Six Feet Under, vivendo um namorico de David que também se chama Ben (Foto: HBO)

Igualmente vital para o avanço da trama é a rede de pessoas que morrem a cada abertura de capítulo. Desde um funeral budista que apresenta Nate à fantástica Rabina Ari (Molly Parker), até um velório do motoqueiro que dá ao primogênito um ombro amigo e um meio de transporte libertador, nada passa batido na recepção da funerária. E a bruxa em forma de sorrisos e cheques, Mitzy (Julie White), azucrina no processo de destruir a concorrência, mas os irmãos desviam de cada armadilha.

Sobra espaço até para a pequena participação de Glenn Fitzgerald, que contracenaria com Krause anos depois em Dirty Sexy Money. Em Six Feet Under, ele interpreta um paciente em estado terminal com quem Nate divide algumas angústias; ao longo de três episódios, as cenas de conversa e remorso são acentuadas pela própria condição do agente funerário, que se vê cego entre o avanço da doença e o noivado destruído. Gravadas no mesmo dia, as sequências precisaram da presença de três diretores diferentes.

Além da rabina, a série convida outras divas para papéis pontuais, normalmente acoplados às mortes de abertura: Mare Winningham é uma viúva desacreditada e vidente, enquanto Harriet Sansom Harris atua na chave do rancor (Foto: HBO)

Em crescente, Rico (Freddy Rodríguez) ainda busca o status de sócio da funerária, e passa por maus bocados: vê a esposa Vanessa (Justina Machado) demitida por um “erro” seu, briga com o primo Ramón, quando o flagra transando com um ajudante na obra de reforma na casa nova, e tem de encarar o filho arrogante de uma vizinha idosa que acabou de falecer. São emoções engarrafadas e muitas vezes não processadas do homem, em outro dos estudos de personagem que a série de Alan Ball faz sem pestanejar. Homens complexos, carregados de vícios e preconceitos e que não agradam audiência ou a eles mesmos com fim de harmonia e paz.

Os conflitos humanos são combustível para as brigas e o choro, que na família Fisher é raridade, mas chega em abundância na reta final da segunda temporada. Dividindo caneta e câmera entre um time de peso, Alan Ball delega episódios cruciais para que o roteiro e a direção fluam de maneira útil à história. In the Game (episódio 1) ganha comando de Rodrigo Garcia, cineasta responsável por Sopranos e Albert Nobbs

No Sindicato dos Atores de 2003, Six Feet Under venceu como Melhor Elenco em Drama; no mesmo ano, ganhou o cultuado prêmio Peabody (Foto: HBO)

Kathy Bates retorna à cadeira e dirige a semana seguinte, marcada pela morte prematura de um jogador de futebol americano – reflexo da efemeridade que assombra Nate desde o ponto de partida de seu diagnóstico. O bárbaro In Place of Anger (episódio 6) ganha a assinatura de Michael Engler, de A Idade Dourada, e aprisiona os personagens em ângulos e cantos que sufocam. É também ali que Harriet Sansom Harris aparece como uma viúva volátil e a série martela as distintas reações que a morte de alguém desperta em seus arredores. 

Back to the Garden, impresso na contracapa da homofobia de Rico e no funeral budista, foi reconhecido no Sindicato dos Diretores com uma indicação para Daniel Attias, além de contar com roteiro de Joey Soloway, futura criadora de Transparent. O especial de Natal, no oitavo capítulo, é feito no poderio de Alan Taylor (exímio em Game of Thrones e pouco aproveitado em Thor 2), com as forças dramáticas em sinergia para decantar do feriado natalino o sumo do ressentimento que tornará mais simples o vínculo entre mãe e filhos: a peça mais do que fundamental para a maturidade das temporadas seguintes.

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