“Quem vive? Quem morre? Quem conta sua história?” indaga uma das canções do musical Hamilton, o premiado reconto dos Estados Unidos que coloca pessoas não-brancas no protagonismo que lhes foi apagado. Lá, a responsável por difundir a mensagem de patriotismo e heroísmo é Eliza, a sobreviventes dos horrores da Guerra. O último episódio da segunda temporada de A Casa do Dragão levanta pontos semelhantes.
A História te pintará como vilã, conclui Rhaenyra à Alicent, pouco depois de ser despertada do sono e confrontada pela amiga no escuro da biblioteca. Se o encontro do episódio 3 aconteceu onde a Verde adorava à sua religião, o reencontro da vez toma parte em meio aos livros e velas que guiaram a Targaryen em sua busca infrutífera por novos aliados. À seu modo, elas visitam o íntimo uma da outra.
As confidências não são novidade: uma se arrepende, a outra não dá o braço a torcer. Uma sugere trégua, a outra não morde a isca. A honesta reação de Alicent, em mais uma aula de mestre de Olivia Cooke, está no semblante de medo e paz que corrompe os olhos em marejo. Ela quer se livrar de todos os grilhões, colocar Helaena num braço, Jaehera no outro e partir dali. Até, quem sabe, cutuca a memória de Rhaenyra, citando à perfeição um convite que suas versões adolescentes cogitaram antes.
Andar por aí de dragão e comer bolo. Simples assim, fácil assim. O peso da balança verteu-se para o lado da Rainha do Trono de Ferro, que guarda na mente uma imaginação fértil, criando, por breves segundos, a imagem perfeita onde ela e Alicent deixariam tudo para trás. A realidade desmorona qualquer anseio, porém, já que o oitavo capítulo deixa claro a evolução de uma Guerra em estado perene de ebulição.
Capturada em um buraco da estante que comporta pergaminhos e manuscritos, Emma D’Arcy não tem o sol ou o céu para encarar. E Alicent, de costas para o castelo milenar da família em que casou, perde de vista as nuvens e a silhueta distante das ondas. É a cisão, não por violência ou sangue, mas pelos dados do destino. O que acarreta, claro, na falsa sensação de que algo mais bombástico ou definitivo vai acontecer no final da temporada. Não acontece, e tampouco deveria.
A Casa do Dragão nasceu na promessa de adaptar pouco mais de dois anos de História de Westeros em quarenta episódios de uma hora cada: a ideia de gotejar drama, fogo e mortes estava prescrita junto da gênese da produção, confirmada para acabar na season 4. E se a temporada inicial corria como louca na euforia de envelhecer seus peões e jogá-los uns contra os outros, a segunda repensa a estratégia e opta por interromper o correr da trama em favor da ansiedade.
A decisão de diminuir o formato, de 10 para 8 episódios, indicava certa descrença em chegar nos finalmentes. The Queen Who Ever Was tem cara de episódio de transição, à moda do que Game of Thrones fazia em seus tempos de glória: uma super emboscada criativa e narrativa que acarretaria no verdadeiro caos da batalha. Fosse essa uma semana corriqueira da série, o problema estaria remediado.
Mas não é. E a terceira temporada, já confirmada mas longe de estar sendo escrita ou produzida, deve demorar os mesmos vinte meses para voltar à ativa. É desmotivador e cansativo o modelo que transformou em status quo o pacote de 8 episódios como o bastante para corresponder ao que a história se propõe a contar. E quem enxerga nesse segundo ano um festival de promessas também não está equivocado.
A falta de propósito de Ryan Condal, que planeja seus roteiros sem noção do que estará cruzando a esquina, diminui o impacto dos personagens. Daemon (Matt Smith) é servido com uma premissa impecável, assombrado por um castelo maldito e uma bruxa misteriosa, mas se engasga no texto paupérrimo que gira sua evolução atrás do próprio rabo para então aterrisar no mesmo local de partida.
Se os planos eram o do Rei Consorte duvidar do governo da esposa e clamar para si a Coroa do irmão, a temporada 1 não poderia acabar com ele aceitando Rhaenyra e se ajoelhando em vassalagem. Se os planos eram deleita-lo com as visões proféticas e a Canção de Gelo e Fogo, então ele não deveria ser atormentado por um passado repetitivo e enfadonho. Apenas o futuro mudou a cabeça do Príncipe, justamente nos momentos finais antes do arremate com a governante.
No resto do capítulo, que se estende ao norte dos sessenta minutos, os demais núcleos se arranjam para a configuração futura. Corlys é confrontado por Alyn, em um monólogo dramático de calibre entregue pelo ator Abubakar Salim; Tyland Lannister (Jefferson Hall) visita Essos e se envolve física e mentalmente com Sharako Lohar (Abigail Thorn); Aegon e Larys escapam das garras de Aemond; e Helaena continua revelando-se como um curinga para os roteiristas.
Ela nega o pedido do irmão (e para a tristeza dos espectadores, não monta em Dreamfyre), para depois arrematá-lo com acusações do passado e previsões do futuro. A Rainha encontra tempo para visitar os sonhos de Daemon e assegurá-lo do papel da família em tudo isso. Trata-se, no mais simples grau, de uma história, destinada a ser encerrada dali a tantos anos e gerações, na figura messiânica que domina os míseros segundos em que aparece.
Daemon vê tudo: do bisneto Corvo de Sangue, até a morte dos homens, dos dragões e seu próprio fim; o cometa vermelho que rasgou o céu e marcou o retorno do Azor Ahai, o Príncipe que foi Prometido, Daenerys. A personagem solitária, que passou anos em crise e sentindo falta de compartilhar a vida com sua finada dinastia, é a mesma mulher objeto de admiração e presente nos sonhos de todos que vieram antes dela.
Quando eclodiu os três ovos de pedra em Drogon, Rhaegal e Viserion, a (Outra) Rainha que Sempre Foi reiniciou a magia do Universo de As Crônicas de Gelo e Fogo. E a decisão criativa de contar a história de seus antepassados, poucos anos depois de entregar a ela um final avesso ao que lhe era reservado, reafirma a importância desta que é a figura máxima da Literatura de George R.R. Martin.
Ela pagou a conta de todos os pecados, intromissões, traições e assassinatos. Mysaria não esconde o simbolismo na direção sempre delirante de Geeta Vasant Patel: quem pagará por isso?, se pergunta a aliada, para que a câmera resete seu eixo e capture o voo inocente de dois dos alicerces de poder de Rhaenyra. A crueldade que nasceu da ignorância passou para o estado de ódio e acabará em ruínas. Como previsto por Helaena, como sentido por Daenerys.
A Casa do Dragão frustra pela abordagem rasa de temas nativos à sua narrativa principal: uma família em conflito que acaba com a própria existência em nome de lendas e suposições. São 7 dragões contra 3, são irmãos contra sobrinhos e tios, primos e avós. A pobre Rhaena, outra das vítimas das circunstâncias, se perde a esmo na imensidão do Vale e encara um monstruoso Roubovelha, a besta selvagem de asas pontudas e voracidade nos olhos.
E se o amor trágico de Rhaenyra e Alicent reserva o grande final desesperançoso, a culpa sempre volta para as mãos de quem não soube escrever conflitos interpessoais com a mesma maestria que o material prévio o fez. Sem roteiro, não há nada. Com Ryan Condal míope aos desafetos de causa e consequência, House of the Dragon vai continuar no campo da antecipação. Isto é, até que a Dança termine e, dos escombros, os Targaryen, amputados de sua herança divina, tenham algo a que se segurar.
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