Explicitar a identidade queer de Rhaenyra é tão benévolo quanto surpreendente para A Casa do Dragão. A bem da comparação, tanto Cersei quanto Dany compartilharam relações homossexuais nas páginas, nunca concretizadas em tela. E a Rainha também: em Fogo & Sangue, sua proximidade com a prima Laena deixa no campo imaginativo os traços sáficos. Pois bem, o beijo trocado com Mysaria não nasceu de hora para outra.
Na raiz de todo o conflito com Alicent, Rhaenyra sempre se enxergou como alguém indisponível e transposta de uma realidade que não lhe era natural. Nasceu mulher, mas virou herdeira. Viveu no castelo cercada por guerreiros e cavaleiros, mas não teve oportunidade de empunhar espada ou voar com Syrax em mote de guerra. Quando despertou o relacionamento com Daemon, enxergou nele um ideal de personalidade e identificação.
O tio era tudo que ela queria ser: bravo, destemido, um homem. A solidão da partida de Daemon, em adição, desempenha forte influência na regência da mulher. Acuada, escanteada pelo próprio Conselho e vivendo os muitos lutos que acumula desde a perda da filha, Rhaenyra encontra nesse ímpeto de mobilidade o combustível para começar a agir por conta. Assim, não hesita ao esbofetear um dos aliados, nem em seguir a dica do filho e começar a Semeadura.
Para o azar do primeiro cavaleiro selecionado, Fumaresia faz churrasco e bate em retirada do castelo. E se o amor, por mais que momentâneo e carnal como o de Nyra e Mysaria, está no ar, o dragão anteriormente montado por Laenor sente o mesmo. Tão solitária quanto os humanos que o resguardam, a besta alada perambula e chega onde deseja: de frente a Addam, o bastardo Velaryon que, pela primeira vez na série, é ele mesmo domado pelo monstro.
A conexão dos Targaryen (e por extensão, dos Velaryon) com os dragões sempre foi sublinhada, mas nunca mostrada à luz da magia e do vínculo quase que sobrenatural que nasce no momento do encontro. A morte de Rhaenys e de Meleys, unidas no olhar e no senso de dever cumprido – e adicionada à abertura, apontou para o futuro mais místico de House of the Dragon, também curvada aos ideais mais obscuros de Harrenhal.
O elefante branco na série medieval, o arco de Daemon no castelo furado é o ponto de fricção para o roteiro do criador Ryan Condal. Para a sexta semana de exibição, quem assume o texto é a talentosa Eileen Shim, escriba do capítulo oito da temporada passada, marcado pela caminhada fúnebre de Viserys ao Trono e sua eventual morte. Ela se mostra hábil no menor dos movimentos estratégicos, e traz de volta Paddy Considine nas alucinações do irmão.
Depois de ser atormentado pela criança que decapitou, pela sobrinha que contaminou, pela mãe que o abandonou e pelo sobrinho que falhou em matar, Daemon encara o maior e mais temido de seus pecados: a figura enlutada do Rei, que lamenta a morte da esposa e do bebê, Herdeiro por um Dia. Por mais que a manobra de conversar com fantasmas seja truque barato para roteiro em crise de consciência, o que Smallfolk traz de novidade ao tropo é justamente o ponto de ebulição do guerreiro.
Farto das visões e das desculpas dadas por Simon Strong, Daemon quer partir nas costas de Caraxes. O plano morre nas palavras de Alys Rivers, a bruxa que conjura bons ventos e alimenta a natureza com os sussurros de suas ações. Ela adianta o futuro sorridente para a aliança com os Tully, e Daemon de nada desconfia. Sua fome de poder, e desejo alucinante de sentar-se, enfim, no Trono de Ferro, faz da cisão com Rhaenyra o único embate ideológico da série.
Afinal, o modo como filmam e telegrafam os Verdes manda embora qualquer senso de empatia ou relação afetiva. Restou jogar Daemon para o lado cinzento da coisa toda, e fazer do aliado inicial de Rhaenyra um adversário formidável. Pelo menos, em teoria. O inimigo real, à esta altura deitado moribundo em meio a queimaduras e leite de papoula, recebe visitas indesejadas.
Aemond beija o irmão com a mesma intenção que Judas o fez aos pés da cruz, enquanto uma afoita Alicent prega pela união tardia da família. Demitida do posto de conselheira, encontra na religião o resquício de identidade. Leva Helaena ao Septo, mas encontra hostilidade e violência. Ganha um corte no braço, localizado na mesma posição e ângulo que rasgou a pele de Rhaenyra no incidente com Aemond e Luke.
É tudo tão trágico e inerente ao arco de Alicent, a garota obrigada a parir os filhos de um Rei fadado à cólera. A mãe incapaz de impedir que o veneno escorresse por entre a linhagem. A irmã desiludida, que encontra paz na certeza que, distante da Fortaleza Vermelha e da mão invisível da Coroa, o caçula Daeron cresceu benévolo e gentil. Não há destino pior do que uma jornada completa de infelicidade e devastação.
O beijo que Rhaenyra trocou com Mysaria, nascido do improviso e ideia de Emma D’Arcy, relembra o passado real e o futuro hipotético que a Rainha viveu com Alicent. A amizade de anos que transportava a dupla para o mais ideal dos Olimpos, com risos à beça, destino de conto de fadas e a dragão Syrax como protetora de um amor impossível mas real. A página que a Verde rasgou e endereçou à Preta marcou uma cisão imaterial para ambas partes.
Agora, com suborno alimentar e sementes de intriga plantados em Porto Real, à mando de Mysaria e sob supervisão de Rhaenyra, a vida de Alicent é novamente atravessada pela violência que ela sentiu na pele: no casamento arranjado com Viserys, na briga com a amiga, na certeza de que os filhos, cruéis e egoístas, já estavam podres desde a maçã. Uma substância contaminada e mortal: os genes de uma Hightower embrenhada no ninho de dragões, onde fogo e sangue são os únicos objetos de ação e reação.
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