A 3ª temporada de Six Feet Under é estranha, sombria e irresistível

Com os irmãos enfrentando as realidades próprias do crescimento, episódios alternam entre ilusão e veracidade

min de leitura

Sonho ou realidade? Os primeiros minutos da 3ª temporada de Six Feet Under levantam a questão que perpassa os episódios iniciais. Na maca onde tem o cérebro operado, Nate (Peter Krause) passeia em alucinações pelo passado e pelo futuro, na companhia do pai morto. Quando, enfim, é acordado e volta a si, a vida é outra. Está casado com Lisa (Lili Taylor), criando a pequena Maya e vivendo na casa onde a esposa trabalha para uma chefe mimada.

Longe dos ideais que o primogênito Fisher ansiava ter, para dizer o mínimo. Na mentoria do criador Alan Ball, a terceira temporada brinca de pique-esconde com o espectador, sugerindo uma realidade fabricada que demora a assentar suas regras e lemas. O comentário é perspicaz na oratória de Six Feet Under, que advoga pelas curvas da vida e pela certeza de que apenas o incerto pode ser abraçado.

Perfect Circles é o primeiro episódio da série a ser filmado em widescreen HD 16:9, já que as temporadas 1 e 2 foram filmadas em 4:3 (Foto: HBO)

Se a temporada 1 circulava-se sob a identidade reprimida de David (Michael C. Hall) e a segunda era focada na solidão de Ruth (Frances Conroy), os 13 episódios exibidos em 2003 canalizam-se ao redor do casamento de Nate e como as expectativas que rótulos familiares e sociais impactam em qualquer um. Para tal, o roteiro se organiza primeiro como fábula, para depois assumir tons de drama sombrio e então um mergulho ao vazio.

Mas nem tudo é sobre Nate. O tema da reconciliação é forte aqui, com David e Keith (Mathew St. Patrick) iniciando a terapia entre casais, em busca de equilíbrio. O resultado é para lá de desnivelado, por mais que revele facetas até então desconhecidas um do outro. De uma partida amistosa de paintball que logo se transforma numa noite de ménage a trois, os homens afetam nervos sensíveis, em especial na família do policial.

Nobody Sleeps arma o melhor aniversário da vida de Ruth e foi sucesso nas premiações: Alan Poul foi indicado em Direção, Alan Caso apareceu na lista de Fotografia, e Frances Conroy escolheu como sua submissão ao Emmy 2003 de Atriz em Drama (Foto: HBO)

A incompatibilidade deles, na forma que David abraça os novos amigos no coro gay de Los Angeles e Keith se afunda na angústia do trabalho como segurança particular de madames esnobes, é potencializada e testada ao limite. No caminho, a série não deixa o otimismo levar a melhor e trata de relacionamentos abusivos e dependência emocional com avantajado manejo dos temas, visto a janela de quase 25 anos que separa a exibição original e o ano em que estamos.

Tão revigorante e astuta é a trama que Vanessa (Justina Machado) e Rico (Freddy Rodríguez) enfrentam. Agora diretor sócio da funerária, renomeada como Fisher e Diaz, o homem enxerga a esposa cada vez mais distante e aérea. A morte da mãe coloca a enfermeira em um quadro severo de depressão clínica, e os autodiagnósticos colocam-na em uma fria. Em The Opening, ao ar em abril de 2003, uma doutora delimita os limites dos medicamentos antidepressivos e arremata: eles não são mágicos.

Six Feet Under venceu o prêmio de Elenco no Sindicato dos Atores em 2003, rendendo troféus para Lauren Ambrose, Frances Conroy, Ben Foster, Rachel Griffiths, Michael C. Hall, Peter Krause, Peter Macdissi, Justina Machado, Freddy Rodriguez, Mathew St. Patrick, Lili Taylor e Rainn Wilson (Foto: Reprodução)

Os diversos transtornos e distúrbios dos personagens estão em constante vigilância e evolução pelos diretores e roteiristas, que tomam a fantástica decisão de sumir com Brenda (Rachel Griffiths) por uma porção de capítulos – apesar dos créditos de abertura manterem-na presente. Depois do arco de destruição e asco da massagista na temporada anterior, a ausência dela na trama faz sua importância ser mais do que sentida: queremos ela de volta e queremos vê-la nessa fase diferente de sua própria construção como pessoa.

Espelhando o romantismo de Nate e Brenda com a materialização maciça de Lisa, Six Feet Under mostra a ótica masculina de uma situação corriqueira da vida e do casamento. Sobrecarregada, incerta sobre a reciprocidade do marido e em estado intermitente entre a vida que sonhou e a vida que possui, Lisa não é uma megera cinzenta ou uma donzela injustiçada. É uma mistura das duas e muito mais.

O funeral do pai de Brenda, intitulado Timing & Space, foi a submissão de Rachel Griffiths ao Emmy de Coadjuvante e foi dirigido por Nicole Holofcener, de You Hurt My Feelings e indicada ao Oscar pelo roteiro de Poderia Me Perdoar? (Foto: HBO)

Ela precisa testar os limites da própria paciência com os pedidos extravagantes e egoístas de Carol (Catherine O’Hara) para divorciar-se da vida de abusos e focar na criação da filha. Falha, porém, na comunicação com Nate, que precisa descobrir pela mãe que a mulher não planeja voltar a trabalhar tão cedo assim. Pega no cabo de guerra, a bebê é passiva nas brigas, das opiniões anti-vacina de Lisa até o certo desleixo de Nate com normas e regras de convivência.

Adicione Brenda à equação e o casamento vira do avesso. Em um episódio marcado pela morte do pai da massagista, e um inédito funeral não organizado pela empresa da família, Nate viaja e se reconecta à ex-namorada. Em outra vibração e celibatária por opção, ela enfrenta o luto da mãe volátil e a reaproximação com o irmão, que de uma vez por todas declara o amor e tenta beijá-la. O trauma é tamanho que ela precisa de novos ares: com um novo contrato de aluguel, esbarra no vizinho Joe (Justin Theroux) – e joga o destino para o alto.

A série esconde “pistas” à luz do dia, como Nate ouvindo uma canção sobre uma mulher triste que decide deixar Los Angeles, e Keith e David assistindo ao filme A Mulher Oculta, sobre uma mulher que desaparece em uma viagem de trem sem paradas pela Europa Oriental, refletindo a situação do sumiço de Lisa (Foto: HBO)

Memória e legado estão interligados à maioria das mortes que abrem os episódios. Em um deles, um casal encontra os destroços de um acidente e o esqueleto da vítima, um pai de família morto em 1975 que ganha forma na interpretação de Josh Radnor e um bigode virtuoso para a época. Também vemos a morte de metade de um casal de gays amantes do Teatro e da Ópera.

Recheado de pequenas referências da cultura queer do início dos anos 2000, o episódio ganha título de Nobody Sleeps, em referência ao espetáculo chinês homenageado, e mostra a David uma relação longeva entre dois homens, justamente no momento em que ele duvida dos laços que mantêm e poderá manter com Keith. Aos poucos, a homofobia internalizada por anos de repressão é substituída por pequenas doses de amor e aceitação, no arco desenhado pela perseverança do agente funerário. 

Kathy Bates dirige os ótimos episódios 6 e 12, além de fazer sua estreia como atriz convidada (Foto: HBO)

Tragédias e circunstância de angústia também aparecem aos montes na temporada. Um funcionário que mata os ex-empregadores numa agência de telemarketing acende o lado mais casca-grossa de Rico, que quer negar o atendimento à família do assassino. Em outra ocasião, um grupo de homens assusta a amiga à noite e causa o atropelamento da mesma, em um episódio marcado pela sombria assinatura da Morte. Aquela com M maiúsculo e sem predileções específicas.

O falecimento de Daddy (Leon Rippy), líder de um culto poligâmico, enche a funerária com as esposas enlutadas e dezenas de crianças, prole da crença pregada pela família. Os acontecimentos são reflexo das jornadas internas dos protagonistas, que intercalam o medo de mudar e a ânsia de mover-se em direção ao futuro. E aí que figuras dissonantes são apresentadas para enriquecer e movimentar o núcleo já estabelecido dos Fisher.

Em Blood, Sweat and Desire, a cena que abre o episódio é uma homenagem à cena de morte de Vito Corleone em O Poderoso Chefão, com um homem, sentado tranquilamente, morre enquanto crianças correm entre as roupas estendidas (Foto: HBO)

Bettina (Kathy Bates) surge como amiga da irmã de Ruth e logo assume o posto de confidente da personagem de Conroy. Juntas, passeiam por lojas, afanam alguns itens e despertam uma na outra o senso de aventura e jovialidade que a vida perdeu. Arthur (Rainn Wilson) é o estagiário que a funerária contrata para trabalhar e viver na mesma casa de Ruth. 

A estranha amizade ganha contornos românticos na ausência que um provoca no outro: para ela, um jovem que pode cuidar e zelar e ocasionalmente amar; para ele, uma figura materna com toques edipianos. O romance morre antes de desenvolver-se, mas não sem cavar em Ruth um buraco do tamanho do amor platônico que morreu na mesma tarde em que Nathaniel (Richard Jenkins) deixou a Terra. Seja bem-vindo, George (James Cromwell), o novo homem da vida da matriarca.

Indicado ao prêmio de Roteiro no Emmy, o “crepúsculo” do episódio 12 é o sedativo dado a Claire: nem dormindo, nem acordada, ela enfrenta o aborto sem o amparo ou a ciência da família (Foto: HBO)

O relacionamento entre Ruth e Claire (Lauren Ambrose) amadurece com tempo e cuidado, assim que a jovem ingressa na Faculdade de Artes e conhece os novos coadjuvantes de sua rotina. O excêntrico professor Olivier (Peter Macdissi) esbanja um olhar predatório que só é apaziguado pela presença inerte de Russell (Ben Foster), colega que começa a abrir os horizontes da garota. Depois de um caso passageiro com o funcionário do crematório que apenas reafirma a posição monogâmica de Claire, a vida universitária trafega as emoções por vias perigosas.

As relações de poder com o professor, que logo torna-se chefe, acabam com as esperanças que Claire cultivou no dia da matrícula. Certa de que, ao assinar um papel, sua vida ganharia rumo e direção, ela se enxerga mais uma vez à deriva. Russell ilumina alguns momentos, mas a traição de confiança acaba com qualquer chance de perdão. Não ajuda que, isolada, a caçula recorre à Brenda para uma viagem nada animadora à clínica de aborto.

Justin Theroux, que interpreta Joe, vizinho e eventual namorado de Brenda, foi a escolha inicial de Alan Ball para o papel de Nate Fisher (Foto: HBO)

E para todo discurso progressista que Six Feet Under dominou com astúcia para a época de lançamento, a série desliza vez ou outra. Na season finale, que ganha o astuto título I’m Sorry, I’m Lost, Claire vagueia pelo cemitério em busca da lápide do pai. Lá, descobre uma celebração sem precedentes e com balões de sobra. Nathaniel assegura que o evento é corriqueiro ali, desmistificando a morte como lugar único de lamentação. Entre as crianças, cachorros, macacos e sorrisos, Claire esbarra com algumas figuras do passado.

O ex-namorado Gabriel (Eric Balfour) está lá com o irmãozinho, assim como a confirmação da inevitável tragédia da terceira temporada. Em troca honesta com Lisa, Claire enxerga um bebê crescido que representa o resultado do procedimento que realizou na clínica pouco tempo antes. Certo que as alucinações não são linha direta da realidade, e que refletem a psique em crise do interlocutor, a presença da criança é em partes iguais sombria e gratuita.

No Emmy 2003, a série apareceu em menos categorias e perdeu todas: Melhor Drama, Direção, Roteiro, Atriz para Conroy, Ator para Krause, Atriz Coadjuvante para Ambrose e Griffiths e atuação convidada para Cromwell e Bates; só venceu Casting entre as 7 indicações dos prêmios técnicos (Foto: HBO)

Mas ele está ali para firmar o pacto que Six Feet Under organiza com senso de lamúria e tragédia. Lisa some no episódio 10 e só aparece em lampejos da cabeça de Nate, destruído por todas as possibilidades e impossibilidades. Não saber é pior do que receber o telefonema que sacramenta a verdade. Morta, a esposa deixa uma marca em carne viva na família, que agora assume novamente o volante na estrada cheia de pedregulhos e desvios.

Fazer as pazes com a vida, e sua gama de cruéis acontecimentos, está no DNA do seriado. Encarar cada movimento e cada encontro com cabeça leve e certeza de que, no fim, nada é assegurado ou seguro. Quando um serial killer é executado no Texas, seu corpo é enviado para Los Angeles e sua filha órfã (Anne Dudek) aparece na funerária, Nate não raciocina e cai no padrão criado por si mesmo.

Apesar de dispersa no núcleo dos irmãos, a temporada encontra espaço para as conexões pessoais e o fardo de filho mais velho de Nate, crente de que deve passar pelos intempéries sozinho (Foto: HBO)

Transa com ela e depois humilha a garota. Bebe, briga e chora. Some por horas e deixa Maya aos cuidados da mãe e da irmã. Esconde a culpa na agonia e na raiva; flerta com a morte e revela, mais uma vez, como a presença do pai é metamórfica na vida dos que ficaram para trás. Com Nate, Nathaniel é severo; com David, é sacana; com Claire, é a fortaleza de conforto; e com Ruth, prestes a casar-se com George pouco depois de conhecê-lo, é uma amálgama de saudade e unidade. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *