Sonho ou realidade? Os primeiros minutos da 3ª temporada de Six Feet Under levantam a questão que perpassa os episódios iniciais. Na maca onde tem o cérebro operado, Nate (Peter Krause) passeia em alucinações pelo passado e pelo futuro, na companhia do pai morto. Quando, enfim, é acordado e volta a si, a vida é outra. Está casado com Lisa (Lili Taylor), criando a pequena Maya e vivendo na casa onde a esposa trabalha para uma chefe mimada.
Longe dos ideais que o primogênito Fisher ansiava ter, para dizer o mínimo. Na mentoria do criador Alan Ball, a terceira temporada brinca de pique-esconde com o espectador, sugerindo uma realidade fabricada que demora a assentar suas regras e lemas. O comentário é perspicaz na oratória de Six Feet Under, que advoga pelas curvas da vida e pela certeza de que apenas o incerto pode ser abraçado.

Se a temporada 1 circulava-se sob a identidade reprimida de David (Michael C. Hall) e a segunda era focada na solidão de Ruth (Frances Conroy), os 13 episódios exibidos em 2003 canalizam-se ao redor do casamento de Nate e como as expectativas que rótulos familiares e sociais impactam em qualquer um. Para tal, o roteiro se organiza primeiro como fábula, para depois assumir tons de drama sombrio e então um mergulho ao vazio.
Mas nem tudo é sobre Nate. O tema da reconciliação é forte aqui, com David e Keith (Mathew St. Patrick) iniciando a terapia entre casais, em busca de equilíbrio. O resultado é para lá de desnivelado, por mais que revele facetas até então desconhecidas um do outro. De uma partida amistosa de paintball que logo se transforma numa noite de ménage a trois, os homens afetam nervos sensíveis, em especial na família do policial.

A incompatibilidade deles, na forma que David abraça os novos amigos no coro gay de Los Angeles e Keith se afunda na angústia do trabalho como segurança particular de madames esnobes, é potencializada e testada ao limite. No caminho, a série não deixa o otimismo levar a melhor e trata de relacionamentos abusivos e dependência emocional com avantajado manejo dos temas, visto a janela de quase 25 anos que separa a exibição original e o ano em que estamos.
Tão revigorante e astuta é a trama que Vanessa (Justina Machado) e Rico (Freddy Rodríguez) enfrentam. Agora diretor sócio da funerária, renomeada como Fisher e Diaz, o homem enxerga a esposa cada vez mais distante e aérea. A morte da mãe coloca a enfermeira em um quadro severo de depressão clínica, e os autodiagnósticos colocam-na em uma fria. Em The Opening, ao ar em abril de 2003, uma doutora delimita os limites dos medicamentos antidepressivos e arremata: eles não são mágicos.

Os diversos transtornos e distúrbios dos personagens estão em constante vigilância e evolução pelos diretores e roteiristas, que tomam a fantástica decisão de sumir com Brenda (Rachel Griffiths) por uma porção de capítulos – apesar dos créditos de abertura manterem-na presente. Depois do arco de destruição e asco da massagista na temporada anterior, a ausência dela na trama faz sua importância ser mais do que sentida: queremos ela de volta e queremos vê-la nessa fase diferente de sua própria construção como pessoa.
Espelhando o romantismo de Nate e Brenda com a materialização maciça de Lisa, Six Feet Under mostra a ótica masculina de uma situação corriqueira da vida e do casamento. Sobrecarregada, incerta sobre a reciprocidade do marido e em estado intermitente entre a vida que sonhou e a vida que possui, Lisa não é uma megera cinzenta ou uma donzela injustiçada. É uma mistura das duas e muito mais.

Ela precisa testar os limites da própria paciência com os pedidos extravagantes e egoístas de Carol (Catherine O’Hara) para divorciar-se da vida de abusos e focar na criação da filha. Falha, porém, na comunicação com Nate, que precisa descobrir pela mãe que a mulher não planeja voltar a trabalhar tão cedo assim. Pega no cabo de guerra, a bebê é passiva nas brigas, das opiniões anti-vacina de Lisa até o certo desleixo de Nate com normas e regras de convivência.
Adicione Brenda à equação e o casamento vira do avesso. Em um episódio marcado pela morte do pai da massagista, e um inédito funeral não organizado pela empresa da família, Nate viaja e se reconecta à ex-namorada. Em outra vibração e celibatária por opção, ela enfrenta o luto da mãe volátil e a reaproximação com o irmão, que de uma vez por todas declara o amor e tenta beijá-la. O trauma é tamanho que ela precisa de novos ares: com um novo contrato de aluguel, esbarra no vizinho Joe (Justin Theroux) – e joga o destino para o alto.

Memória e legado estão interligados à maioria das mortes que abrem os episódios. Em um deles, um casal encontra os destroços de um acidente e o esqueleto da vítima, um pai de família morto em 1975 que ganha forma na interpretação de Josh Radnor e um bigode virtuoso para a época. Também vemos a morte de metade de um casal de gays amantes do Teatro e da Ópera.
Recheado de pequenas referências da cultura queer do início dos anos 2000, o episódio ganha título de Nobody Sleeps, em referência ao espetáculo chinês homenageado, e mostra a David uma relação longeva entre dois homens, justamente no momento em que ele duvida dos laços que mantêm e poderá manter com Keith. Aos poucos, a homofobia internalizada por anos de repressão é substituída por pequenas doses de amor e aceitação, no arco desenhado pela perseverança do agente funerário.

Tragédias e circunstância de angústia também aparecem aos montes na temporada. Um funcionário que mata os ex-empregadores numa agência de telemarketing acende o lado mais casca-grossa de Rico, que quer negar o atendimento à família do assassino. Em outra ocasião, um grupo de homens assusta a amiga à noite e causa o atropelamento da mesma, em um episódio marcado pela sombria assinatura da Morte. Aquela com M maiúsculo e sem predileções específicas.
O falecimento de Daddy (Leon Rippy), líder de um culto poligâmico, enche a funerária com as esposas enlutadas e dezenas de crianças, prole da crença pregada pela família. Os acontecimentos são reflexo das jornadas internas dos protagonistas, que intercalam o medo de mudar e a ânsia de mover-se em direção ao futuro. E aí que figuras dissonantes são apresentadas para enriquecer e movimentar o núcleo já estabelecido dos Fisher.

Bettina (Kathy Bates) surge como amiga da irmã de Ruth e logo assume o posto de confidente da personagem de Conroy. Juntas, passeiam por lojas, afanam alguns itens e despertam uma na outra o senso de aventura e jovialidade que a vida perdeu. Arthur (Rainn Wilson) é o estagiário que a funerária contrata para trabalhar e viver na mesma casa de Ruth.
A estranha amizade ganha contornos românticos na ausência que um provoca no outro: para ela, um jovem que pode cuidar e zelar e ocasionalmente amar; para ele, uma figura materna com toques edipianos. O romance morre antes de desenvolver-se, mas não sem cavar em Ruth um buraco do tamanho do amor platônico que morreu na mesma tarde em que Nathaniel (Richard Jenkins) deixou a Terra. Seja bem-vindo, George (James Cromwell), o novo homem da vida da matriarca.

O relacionamento entre Ruth e Claire (Lauren Ambrose) amadurece com tempo e cuidado, assim que a jovem ingressa na Faculdade de Artes e conhece os novos coadjuvantes de sua rotina. O excêntrico professor Olivier (Peter Macdissi) esbanja um olhar predatório que só é apaziguado pela presença inerte de Russell (Ben Foster), colega que começa a abrir os horizontes da garota. Depois de um caso passageiro com o funcionário do crematório que apenas reafirma a posição monogâmica de Claire, a vida universitária trafega as emoções por vias perigosas.
As relações de poder com o professor, que logo torna-se chefe, acabam com as esperanças que Claire cultivou no dia da matrícula. Certa de que, ao assinar um papel, sua vida ganharia rumo e direção, ela se enxerga mais uma vez à deriva. Russell ilumina alguns momentos, mas a traição de confiança acaba com qualquer chance de perdão. Não ajuda que, isolada, a caçula recorre à Brenda para uma viagem nada animadora à clínica de aborto.

E para todo discurso progressista que Six Feet Under dominou com astúcia para a época de lançamento, a série desliza vez ou outra. Na season finale, que ganha o astuto título I’m Sorry, I’m Lost, Claire vagueia pelo cemitério em busca da lápide do pai. Lá, descobre uma celebração sem precedentes e com balões de sobra. Nathaniel assegura que o evento é corriqueiro ali, desmistificando a morte como lugar único de lamentação. Entre as crianças, cachorros, macacos e sorrisos, Claire esbarra com algumas figuras do passado.
O ex-namorado Gabriel (Eric Balfour) está lá com o irmãozinho, assim como a confirmação da inevitável tragédia da terceira temporada. Em troca honesta com Lisa, Claire enxerga um bebê crescido que representa o resultado do procedimento que realizou na clínica pouco tempo antes. Certo que as alucinações não são linha direta da realidade, e que refletem a psique em crise do interlocutor, a presença da criança é em partes iguais sombria e gratuita.

Mas ele está ali para firmar o pacto que Six Feet Under organiza com senso de lamúria e tragédia. Lisa some no episódio 10 e só aparece em lampejos da cabeça de Nate, destruído por todas as possibilidades e impossibilidades. Não saber é pior do que receber o telefonema que sacramenta a verdade. Morta, a esposa deixa uma marca em carne viva na família, que agora assume novamente o volante na estrada cheia de pedregulhos e desvios.
Fazer as pazes com a vida, e sua gama de cruéis acontecimentos, está no DNA do seriado. Encarar cada movimento e cada encontro com cabeça leve e certeza de que, no fim, nada é assegurado ou seguro. Quando um serial killer é executado no Texas, seu corpo é enviado para Los Angeles e sua filha órfã (Anne Dudek) aparece na funerária, Nate não raciocina e cai no padrão criado por si mesmo.

Transa com ela e depois humilha a garota. Bebe, briga e chora. Some por horas e deixa Maya aos cuidados da mãe e da irmã. Esconde a culpa na agonia e na raiva; flerta com a morte e revela, mais uma vez, como a presença do pai é metamórfica na vida dos que ficaram para trás. Com Nate, Nathaniel é severo; com David, é sacana; com Claire, é a fortaleza de conforto; e com Ruth, prestes a casar-se com George pouco depois de conhecê-lo, é uma amálgama de saudade e unidade.
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