Quando o assassinato de Harvey Milk toma o centro da trama de Companheiros de Viagem (Fellow Travelers), a minissérie está em sua parcela final de episódios. O precedente, porém, se volta para a construção de um romance que atravessou décadas e obstáculos, entre Hawk (Matt Bomer) e Tim (Jonathan Bailey), sempre aterrado pela evolução política que queimava cada canto dos Estados Unidos.
Eles se conhecem nos anos 50, ponto de partida da criação de Ron Nyswaner, baseando-se no romance de Thomas Mallon. Período marcado pela ascensão do Macarthismo, de quem Tim é fiel, e da caça às bruxas vermelhas, quando comunistas e homossexuais, no mesmo balaio, eram farejados e açoitados pela imprensa e pelo governo.
Companheiros de Viagem, tomando de título o eufemismo que muitas vezes descrevia a natureza da relação entre os homens, viaja entre o florescer do amor até seu momento de ultimato, quando Tim, já muito fragilizado em meio a epidemia da AIDS, força Hawk a confrontar seu passado e, enfim, fazer as pazes com si mesmo e o mundo que renegou.
O subgênero criado a partir do sofrimento gay, lésbico, bissexual e trans não é fresco aos espectadores; especialmente no mercado americano, com predileção em escalar atores heterossexuais em papéis que exploram a dor e a vivência queer. O próprio Milk rendeu um Oscar a Sean Penn. O ponto de destaque de Fellow Travelers, além de dois homossexuais nos papéis protagonistas, é a abordagem quase fabular dos temores de uma comunidade à mercê da percepção pública.
Se o sistema “não pergunte e nem conte” dos anos pós-Guerra eram motivo de terror e mentiras calculadas, pelos olhos de Hawk, o roteiro avança a discussão e salienta as gerações se dividindo em formação e liberdade. Ao passo que Tim se emancipa do papel de ingênuo, religioso e temeroso, seu parceiro retrai-se para o buraco dos vícios, abafando a cobrança e a vergonha com álcool, drogas e sexo.
Reconhecendo também o privilégio dos brancos, nada afeminados, homens de terno e gravata que passeiam por gabinetes de Washington e frequentam julgamentos parlamentares, Fellow Travelers dedica-se com afeto a Marcus (Jelani Alladin), jornalista negro que não se pode dar ao trabalho de cometer os mesmos “erros” e transpor as barreiras que Tim e Hawk o fazem.
Seu namorado, Reggie (Noah J. Ricketts), é avatar do progressismo da comunidade, já que o trabalho como drag queen no único bar liberado, logo se transforma em voz e linha de frente dos movimentos sociais, de saúde pública e conscientização. Há cuidado e muita visão de mundo na hora de delimitar onde cada seção de um grupo nada homogêneo opera e como isso é feito.
No lado de lá, a esposa de Hawk ganha o carisma e a paciência de Allison Williams, que interpreta uma Lucy calma e comedida, mas ciente das cicatrizes em hemorragia. Muito atenta aos movimentos e escorregões do marido, ela é responsável por desarmar as bombas de clichê e choro que costumeiramente chegam anexadas ao arquétipo da mulher traída e impotente.
Matt Bomer, anos depois de ter grandes e másculos papéis negados por sua orientação sexual, encarna Hawk como um caçador. No peitoral, carrega paixão, fogo e uma dose de vergonha, a receita ideal para roubar o coração do risonho e introvertido Tim de Jonathan Bailey, um ator expert nas emulações de flama e rancor. Requisitado, ele intercalou as filmagens de Fellow Travelers com os sets de Bridgerton e Wicked, demonstrando aptidão e habilidade de executar difíceis tarefas ao mesmo tempo.
A tristeza toma conta do senso de sensualidade e tesão dos episódios iniciais, mas a série não deixa de lado a fagulha de liberdade e egoísmo que moldou não apenas os personagens representados aqui, mas toda uma geração de homens, mulheres e pessoas impedidas de viverem a totalidade de quem eram. Quando atravessa os anos 80 e encara de frente os horrores do HIV, a série cede espaço para que a arte se curve à História.
No balanço entre a ficção e a realidade latente, Companheiros de Viagem fala de tudo um pouco: o amor, o julgamento, os medos e a esperança. Em um mercado televisivo encharcado de ressentimento e sofrimento queer, e com uma história realizada em conjunto criativo dos indivíduos representados, abre-se estrada para mais prosperidade e, principalmente, criatividade.
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