Mais um fim de expediente se aproxima em um restaurante de classe média alta de São Paulo. Inácio, o dono, conversa atrás do balcão com Sara, sua garçonete de ouro. Na cozinha, a equipe se prepara para atender o último cliente da noite – carne de coelho, sem alho, por favor. Outros dois passam pela porta, um casal em busca de um bom vinho, e a tensão começa a espreitar, afinal, Djair, o cozinheiro, não acha justo que ele e os outros funcionários fiquem até tarde da noite trabalhando. Ainda faltam 15 minutos para o restaurante fechar, responde o patrão.
Quando parece que a situação vai começar a espiralar, dois assaltantes invadem o estabelecimento, violentam uma cliente e exigem dinheiro. Se começamos O Animal Cordial com uma pequena pulga atrás da orelha, ela logo se transforma em um gigante parasita sanguessuga que engole nossas cabeças, e tudo isso por um motivo: Inácio – ou melhor, o espetacular Murilo Benício. Ele nunca nos convence por inteiro e isso é o grande trunfo do ator. Sabemos que alguma coisa de muito errada se esconde ali. Tudo que faltava era um empurrão. Que tal um assalto com dois marginais?
Dirigido por Gabriela Amaral Almeida, O Animal Cordial foi muito discutido às vésperas da eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Inácio se recusa a chamar a polícia, atira em um bandido, amarra o outro e logo começa a ditar ordens com a arma em punho. A fala continua mansa, o cabelo continua intacto, mas as mãos logo se sujam de sangue. Ao seu lado, uma alma reprimida: Sara, de Luciana Paes, se esgueira pelos cantos, se torna quem enfim queria ser, morre e renasce como outra.
Paes divide o protagonismo magnético com Benício, que, por sua vez, não seria nada sem o embate com o resto do elenco, que conta com Camila Morgado, Humberto Carrão, Ernani Moraes e o maravilhoso, astronômico, babilônico Irandhir Santos. O ator dá voz, vida e alma a Djair, aquele que representa o que existe de pior para Inácio: a rebeldia, a esperança, a insistência em ser e viver e amar e ser amado. Não à toa, é Djair quem é deixado para o final, para o clímax de uma história já tão frenética.
Gabriela Amaral Almeida não esconde seu fascínio com o horror, e transforma o sangue em figurino, roteiro e fotografia. Com um gore reprimido de altíssimo nível e dialogando perfeitamente com o contexto em que foi idealizado, O Animal Cordial derruba a fachada do cidadão de bem, doido para fazer justiça com as próprias mãos, assustado que nem um coelho e covarde pela própria natureza.
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