Publicado em 1986, It – A Coisa rendeu duas cultuadas adaptações para as telas, na forma de uma minissérie e de uma dupla de filmes, com foco no Clube dos Perdedores lutando contra a entidade cósmica que assola uma pequena cidade no Maine. Expandindo a mitologia de Stephen King, Jason Fuchs, Andy Muschietti e Barbara Muschietti lançam It: Bem-Vindos a Derry na HBO.
Das mais de mil páginas do romance de King, o trio extrai material anterior ao mostrado nos longas de 2017 e 2019, eternizados também pela interpretação teatral e sanguinolenta de Bill Skarsgård como o palhaço dançarino Pennywise. Estamos na década de sessenta, vinte e sete anos (ou um ciclo) antes dos terrores de Mike, Bev e companhia.

No imbróglio da Guerra Fria e do extremismo causado por crimes raciais contra negros e nativos-americanos, a primeira temporada constrói em mimese ao grupo de crianças incubido de derrotar a Coisa – mas não são os Perdedores “originais” os únicos protagonistas de Bem-Vindos a Derry.
Leroy Hanlon (Jovan Adepo) e sua esposa Charlotte (Taylour Paige) se mudam para Derry por conta do emprego militar e de uma investigação que envolve os primórdios do local. Junto deles, o pequeno Will (Blake Cameron James) patina até conseguir se estabelecer no colégio, mas é na tragédia que abre o primeiro episódio que as crianças se unem.

Após um massacre na sala de cinema, Lilly (Clara Stack), Ronnie (Amanda Christine), Marge (Matilda Lawler) e Rich (Arian S. Cartaya) precisam unir forças à Will e, no QG improvisado num prédio abandonado, os jovens bolam planos que tentam entender e combater o Mal que assume diversas formas e facetas.
Primeiro pela incerteza do retorno de Skarsgård ao papel, a produção driblou o uso do palhaço, mostrando que A Coisa pode ser tudo que amedronta suas vítimas. Mas é justamente no retorno do vilão em sua clássica pose e guarda-roupa que Bem-Vindos a Derry melhor se sai, após uma porção de episódios indistinguíveis entre a homenagem nostálgica e o drama anêmico dos militares e sua arma ultra-poderosa.

No fogo cruzado, a série apresenta a versão mais sadia de Dick Hallorann (Chris Chalk), personagem importante no universo de King, e a principal conexão da humanidade com A Coisa e suas origens. Paralelo ao Iluminado, há também atenção às narrativas indígenas, especialmente no que tange o papel de guardiões que os nativos desempenham em toda a História de Derry.
A anciã Rose (Kimberly Guerrero) e seu sobrinho Taniel (Joshua Odjick) abrem portas para o lado sobrenatural que dá base a Pennywise, que também influencia a maléfica presença de Ingrid Kersch (Madeleine Stowe), uma mulher que cresceu refém das memórias de um pai ausente, depositando no Palhaço esperanças demasiadas fantasiosas para o próprio bem.

Girando com as crianças e os soldados na busca pela Coisa, por razões distintas e com objetivos divergentes, a direção de Muschietti carece dos mesmos dotes que fizeram de It – Capítulo Dois uma decepção sem tamanho: não há arrojo na encenação ou na escolha estética dos ambientes, comumente capturados com o mesmo tom lavado e desgastado de sempre.
Os desafios de produção de Bem-Vindos a Derry foram dificultados pelas Greves de Roteiristas e Atores, motivo de paralisação das filmagens e, no retorno, houve quebra-cabeças para lidar com o estirão adolescente do elenco. Para remendar e não deixar na cara o crescimento, a montagem cortou e colou cenas com ângulos difusos e pouco foco nos rostos; para as vozes dos meninos, arranhando a puberdade, a suspensão da descrença é necessária.

Engraçado o destino de que a série de It e a temporada final de Stranger Things cheguem ao mesmo tempo. King foi fonte clara de inspiração para os Irmãos Duffer, e o ciclo se completa com Bem-Vindos a Derry bebendo muito da fonte que Eleven e companhia brindaram, com a nostalgia, a amizade infantil e a ameaça governamental pairando sobre uma cidade pequena. Sem contar, claro, no vilão que atravessa as barreiras físicas e ataca mentalmente suas vítimas.
E é justamente nessa extrapolação cósmica de Pennywise que a série deixa a desejar, provando que não importam as balas ou as adagas, a entidade que se alimenta de medo não poderá ser derrotada – e voltará daqui a 27 anos, quando a trama dos filmes acontecer. Sem ter para onde correr, Muschietti bola uma armadilha temporal que justifica a batalha da Coisa e ainda ata a história ao que virá depois, ou melhor, antes, já que a segunda temporada será ambientada em 1935.

Com quase todo o material visual e estético reciclado dos longas de 2017 e 2019, a série acerta na forma final de Pennywise, com o sono interrompido e o corpo quase que todo coberto de vísceras. As soluções visuais e criativas de Bem-Vindos a Derry também mostraram-se inspirada nos flashbacks que remontam a resistência indígena, além das memórias de Ingrid com o “pai”, e o jogo de preto, branco e vermelho que a fotografia planejou nas origens do mal que conhecemos hoje sob a forma de um artista de circo.


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