O filho de Arménio (José Martins) não tem escolha: o pai, já octogenário, precisa dos cuidados frequentes e imediatos de um asilo. O idoso discorda, mas enfrenta o desafio de peito aberto – fora as crises que acometem-no durante os sonhos; tiros, explosões e a imagem vívida da Guerra Colonial Portuguesa ainda assombram o ex-soldado.
Em A Memória dos Cheiro das Coisas, o diretor António Ferreira, português naturalizado brasileiro, dedica ao próprio pai o filme que retrata os momentos derradeiros de um homem na Terra. O racismo do personagem, expresso nos reflexos da linguagem e nas conversas com velhos companheiros de exército, movem a história até um ponto impassível.
Quando seu cuidador volta para a terra natal, Arménio é tratado por Hermínia (Mina Andala), mulher negra que desperta no paciente tudo aquilo que ele despejou em tom de ódio, rancor e nojo. A ideia de registrar o comportamento de homens horríveis sob a ótica da velhice e do entendimento tardio não é novidade, e Ferreira não busca reinventar o modelo.

Parte da Perspectiva Internacional da 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme se sobressai no trato do estresse pós-traumático, sendo montado em sequências de alucinações, calmaria seguida de preconceito, e mais terror. O formato fica batido na segunda repetição, portanto deixando no ombro de seu protagonista o labor de carregar os noventa minutos.
Ele o faz com audácia e sangue nos olhos. Reconhecido com o prêmio de Melhor Ator no Festival de Xangai, José Martins expressa uma gama de sentimentos e revelações nas rugas da face, viajando pelo passado, presente e futuro da própria existência. A Memória do Cheiro das Coisas termina em tom melancólico, buscando uma lágrima ou outra de quem assiste, num exercício já conhecido de primeiro desnudar o preconceito para depois vesti-lo com o manto da vulnerabilidade que não cola mais.


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