No deserto de Sirât, a crueldade é regente

Candidato espanhol ao Oscar 2026 abriu a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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O sol cozinha os neurônios, mas os frequentadores da rave no deserto do Marrocos dançam como se não houvesse amanhã. Das caixas de som, posicionadas como barricadas na areia, emana uma batida frenética e quase abissal, tremendo corpos, realinhando órbitas e, no meio de tudo, abrigando a busca de um pai por sua filha.

Sirât venceu o Prêmio do Júri em Cannes e representa a Espanha no Oscar 2026 – os logros não são gratuitos: no filme de Oliver Saxe, uma premissa outrora vista como simples ganha riscos inimagináveis pela interpretação de Sergi López. Seu protagonista é Luis, um homem acompanhado do filho pequeno, Esteban (Bruno Núñez Arjona), numa cruzada sem final aparente.

A presidente Juliette Binoche dividiu o Prêmio do Júri entre Sirât e Sound of Falling, longa alemão de Mascha Schilinski (Foto: Retrato Filmes)

O objetivo da viagem ao mais recôndito dos destinos é a busca da filha jovem adulta. Ela não fugiu, mas foi embora, em um rompante de rebeldia que desestabilizou a harmonia da casa. Luis, porém, encontra todo mundo que poderia imaginar, menos a garota. Laxe e seu co-roteirista Santiago Fillol transformam a história num longa de estrada, ambientado em um campo de terra engolido pelo calor.

Influenciado, muito provavelmente, pelo oásis infernal que George Miller evocou em Mad Max: Estrada da Fúria uma década atrás, Laxe escala atores que interpretam versões fictícias deles mesmos, compartilhando nomes, estilo e o modo de vida. São punks, à margem da sociedade, e até vestem camisetas estampadas com os protagonistas de Freaks, filme de 1927 que olhou com atenção aos horrores definidos pela norma vigente.

Os frequentadores da rave assumem a alcunha de “freaks” do presente: periféricos em busca da liberdade pelo isolamento (Foto: Retrato Filmes)

A família escolhida de Steff (Stefania Gadda), Bigui (Richard Bellamy ‘Bigui’), Josh (Joshua Liam Herderson), Tonin (Tonin Janvier) e Jade (Jade Oukid) acolhe e protege Luis e Esteban, na companhia fiel de dois cachorrinhos, parceiros de batalha e tão vitais para o funcionamento da operação quanto os humanos.

Ao fundo, Sirât fala das guerras que assolam populações reféns de informações e de oportunidades de salvação. O exército invade a festa, causando um tipo de caos que só pode ser defendido com a fuga dos envolvidos. No trajeto até a segunda celebração e, quem sabe, a filha perdida, Luis se coloca no lugar daquela que nunca conseguiu entender. Para tal, o destino reserva acontecimentos deveras cruéis para não apenas testar a resiliência dele, mas para batizar, em sangue, a nova etapa da vida.

Com produção de Pedro Almodóvar, Sirât deixa que o som guie seus personagens (Foto: Retrato Filmes)

Exibido na abertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Sirât é daqueles longas que ganham pelo coração ou perdem pela emoção. Ame ou odeie, o trabalho de Oliver Laxe demanda fúria e sangue frio de quem assiste, assimilando temas de pertencimento e solidão que só são tão bem comunicados pelos fatores extratextuais: da montagem que sobrepõe ardor e luto, passando pela trilha sonora mística e por fim finalizando na maneira que a câmera, tão suada quanto seus objetos de admiração, eterniza cada passo, por mais que o vento apague qualquer rastro de atividade humana. 

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