A farsa da segurança por trás das cercas brancas e jardins floridos é rasgada no início de A Hora do Mal, capturada pelas câmeras e campainhas modernas e tecnológicas, que gravam as crianças abrindo as portas e correndo em direção à escuridão. O sentimento é misto: por um lado, a culpa pelo desleixo; por outro, o medo e a raiva do desconhecido.
O objeto de fascínio de Zach Cregger, diretor que brincou com a ossada do gênero em Noites Brutais, é tão múltiplo quanto seu núcleo de personagens. Inspirado na atmosfera plural e caleidoscópica de Magnólia, o cerne de Weapons é uma cidade qualquer, acometida por algo para lá de incomum.

A professora Justine (Julia Garner) não sabe o motivo de dezessete de seus dezoito alunos terem sumido na madrugada. Tampouco entende os ataques e a violência que sofre por parte dos cidadãos, furiosos com a equação sem resposta. Não ajuda que Alex (Cary Christopher), o único remanescente da classe, retraia o próprio comportamento e não ofereça qualquer pista do paradeiro dos colegas.
Um dos raivosos pais é Archer (Josh Brolin), um chefe de obra que não demora meia hora para pichar, em letras vermelhas, a sentença que profere o destino de Justine: bruxa. No literal sentido de alguém maléfica, desnaturada, pronta para devorar criancinhas. Cregger emula muito dos contos de fadas originais, devolvendo o terror ao imaginário coletivo e fazendo da fábula de João e Maria uma inspiração sufocante. O próprio título, que em português ganhou o jargão do terror comercial, aponta para uma visão perversa daquilo que naturalmente emana inocência.

Se o argumento para a violência armamentista e o comentário sobre o luto que afoga os que sobreviveram a tiroteios em escolas americanas passarem batidos, o roteiro de Cregger não tenta martelar uma visão política ou discursiva. Que uma metralhadora povoe o sonho do pai violento, é questão onírica ao filme.
Pois, como A Hora do Mal desenvolve numa cascata de razão e reação, as instituições que formam uma sociedade funcional estão todas falidas. A educadora é alguém dada ao álcool, e seduz o policial (Alden Ehrenreich) para o lado de lá da balança. A juventude, enraizada na figura de um desajustado trombadinha (Austin Abrams), se vê perdida entre o vício e o roubo. E o homem da casa nada mais é que um reprodutor dos preconceitos e da violência que o formaram. Não assusta a revelação de que, na escola, o valentão que importuna e ataca Alex é ninguém menos que o filho de Archer.

A miríade de pequenas mentiras e falsas verdades que as pessoas contam a si mesmas para sobreviver a mais um dia de brutalidade por todo lado está vinculada ao Mal que intitula Weapons, uma luz que nega a ausência de conhecimento.
A Tia Gladys de Amy Madigan é daqueles ícones do gênero cinematográfico que fazem do pouco tempo de tela um trampolim para tornar-se instantaneamente icônica. Vestindo-se com a mais extravagante das combinações cromáticas, a idosa imita o que acredita ser um humano comum, e por isso é alguém que polariza e afasta.

O cabelo cor de água de cachorro quente é adornado por cores fortes na maquiagem, carregada e pouco caprichada. O batom, num rubro sangrento, descola da base e beija seu rosto como se buscasse apagar um incêndio. É terrível e maravilhoso de se ver — e por isso não desperta a tensão e o terror que sabemos ser de seu feitio.
Gladys não repete o estereótipo nocivo que transforma a mulher velha num monstro detestável. Ela é, por definição da narrativa, uma entidade que envelhece e adoece pelo passar do tempo. É, também, alguém que comanda os ambientes e governa os cidadãos comuns da pequena cidade com um piscar de olhos, e florindo ao passo que o plano é posto em prática.
Que sua principal adversária seja uma professora noviça e anti-virginal, que transa com um homem casado e macula a ideia de que a educação liberta e eleva, é apenas um dos muitos toques de capricho de Zach Cregger, muito mais interessado na tensão racional do que aquela velha e gratuita sequência de sustos por som ou imagem surpresa. Espere só ouvir uma porta abrindo no carro de Justine.

Weapons também inunda a tela com a brilhante propaganda de mercadorias e produtos de uso massivo, de uma lata de Coca-Cola no balcão do bar ao número exorbitante de sopa Campbell’s adquirida por Alex sem qualquer suspeita. Na América embriagada pelo capitalismo e pela dominação das grandes indústrias, que pisam na população e tiram lucro do sangue, tudo é vendido, comprado e potencializado.
Cregger justificou boa parte do clima soturno e impaciente do filme em suas inspirações na hora da direção: além de PTA, Os Suspeitos e Hereditário serviram de criatividade no mapa mental do cineasta. Evidente não só pela tensão que corta as duas horas de rodagem, como também pelo latente gotejar de perversão daquela cidade qualquer na Pensilvânia.

Algo de sinistro ocorre ali, e não começou quando a voz da narradora Scarlett Sher desatou a contar ao espectador a linha do tempo da história. Antes de Gladys, do relógio bater 2:17, das latas de sopa ou da família de Alex deixar de cuidar do garoto, as pessoas adoeciam por outros males, muito piores que gravetos manchados de sangue.
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