Conforme a temporada de premiações chegava ao fim e a corrida avassaladora de Ainda Estou Aqui esfriava, o espírito brasileiro de torcida organizada, efervescente como nunca, já buscava pelo próximo filme que pudesse se agarrar e apoiar em uma possível campanha internacional. O primeiro candidato para este posto foi O Último Azul, que uma semana antes da cerimônia do Oscar conquistava o esplendoroso Urso de Prata, prêmio do júri e o segundo mais importante do Festival de Cinema de Berlim.
A sorte é que o coração de O Último Azul, recém-chegado nos cinemas brasileiros, está muito longe de aspirações passageiras. Para o diretor pernambucano Gabriel Mascaro, em seu discurso de agradecimento, o longa disserta sobre “o direito de sonhar e a crença de que nunca é tarde para encontrar um novo significado na vida”. Uma meditação que mira não apenas o etarismo, mas também como aprendemos coletivamente a enxergar a existência como um fio — finito, e que deve ser cortado por nós mesmos.

Formado pelo cinema documental, Mascaro extrai desta ficção um impulso imaginativo que somente a natureza brutal do cotidiano poderia dispor. Uma distopia tangível justamente pelo quão trivial se é. Passado ou futuro? Não importa. Esta é uma realidade suspensa, que poderia muito bem ser a nossa. E a vida de Tereza (Denise Weinberg) não poderia ser mais ordinária.
Moradora de uma aldeia amazônica, a rotina da senhora de 77 anos já é definida: acordar, trabalhar e dormir. Mesmo nessa idade, a linha de produção rígida e opressiva do frigorífico, em que encontra-se carne de jacaré ao invés de bois, parece quase terapêutica para ela — um motivo para levantar-se. Entretanto, os sinais de estranheza já são evidentes. Certo dia, ao voltar para casa, ela se depara com uma placa dourada na sua porta, uma ‘homenagem’ do governo.
“Mas desde quando uma pessoa é homenageada só porque ficou velha?”, ela indaga. É que, nesta versão do Brasil, foi instituído um sistema de isolamento compulsório para os idosos que, ao completar 80 anos, são levados para uma colônia controlada pelo governo. A justificativa é de que, ao alcançarem essa idade, os mais velhos se tornam fardos e um empecilho para a produtividade dos mais jovens, que recebem uma compensação financeira assim que abrem mão de seus pais.

A propaganda institucional é mais que positiva. Outdoors com famílias sorridentes, estampados pelo lema “o futuro é para todos”, escondem uma lógica nefasta que é incapaz de enxergar valor na vida para além de sua função produtiva. Os idosos são reduzidos a propriedade, trancados em furgões e obrigados a irem para uma dependência isolada, escondida, onde ninguém realmente sabe o que acontece.
Tereza acreditava ainda ter três anos de normalidade, até descobrir que a idade mínima para integração na colônia foi reduzida para 75 anos, e que agora ela teria apenas alguns dias restantes. Sua filha Joana (Clarissa Pinheiro), afogada pelo trabalho e pelas obrigações como mãe, pouco demonstra resistência com a ideia. Tereza, porém, não está pronta. Jogando conversa fora com uma amiga, ela percebe como viver em função do trabalho a privou de tantas experiências. Antes de entregar sua liberdade, ela decide que vai fazer algo que nunca fez: andar de avião.

É dessa premissa aparentemente modesta que O Último Azul lançará seus personagens até às últimas consequências. De início, tudo o que Tereza quer é comprar um voo de ida e volta em uma companhia de viagens. Entretanto, quanto mais o ambiente a poda, mais suas ambições aumentam. Se um avião comercial não a deixar decolar, que seja um voo clandestino em uma vila remota. Se até os navios a impedem de embarcar, que um barco de contrabando faça o trabalho.
Enquanto contorna o rio em uma Amazônia bela, mas insólita, o contrabandista Cadu (Rodrigo Santoro) apresenta Tereza ao caracol de baba azul, uma criatura mítica, de muco vibrante e lisérgico, que promete revelar seu futuro. A aguardada e fugaz aparição do gastrópode, que dá título a’O Último Azul, se revela quase como uma catapulta para a protagonista, abrindo seus caminhos para um cosmo de possibilidades. Talvez apenas uma bad trip seja capaz de convencê-la que “velha tem futuro” sim, afinal.

A partir daí, o longa evolui de uma distopia trágica para uma clássica narrativa coming-of-age, desafiando não somente a personagem, como também as preconcepções da própria audiência sobre o potencial de um corpo idoso. A jornada de Tereza torna-se uma coleção de pequenas crônicas, em que ela sempre aprende uma coisa nova sobre o mundo, as pessoas e si mesma.
A cada novo passo, a protagonista mergulha mais fundo no perigo e no desconhecido. Porém, diferente do que espera-se de histórias nesses moldes, O Último Azul recompensa Tereza por cada uma de suas atitudes ousadas, precipitadas e imprudentes. Para Gabriel Mascaro, pior do que correr riscos é manter-se inerte por toda uma existência.
Viver é uma escolha que exige coragem. A boa notícia é que sempre há tempo de fazê-la.
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