Mau hábito: a vivência travesti de uma espanhola atrasada para o destino

Lido pelo Clube de Dua Lipa e com elogios de Pedro Almodóvar, ficção espanhola propulsiona Portero no mercado internacional

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O mau hábito da protagonista espelhada de Alana S. Portero é chorar escondida – e ela o faz repetidas vezes ao longo da narrativa. Observando os escombros ditatoriais da Espanha nos anos 80, a garota cresce numa casa abafada e rodeada por vítimas da epidemia de heroína. Sem muito com o que se ocupar além de escutar e imaginar, ela conta uma história de identidade trans com capítulos e viradas inacreditáveis: “Era uma espectadora de tudo o que me rodeava, mas não podia tocar nada”, escreve.

Primeiro livro de ficção após várias publicações de poesias, Mau hábito coloca sua autora na retaguarda de uma memória há muito guardada. A alma poeta de Portero pode ser sentida e elogiada na construção de frases, metáforas vorazes e na visão de mundo do eu-lírico, que nunca ganha nome, mas tem história para dar e vender.

“Nós, várias gerações de crianças da classe trabalhadora, crescemos assim, imaginando mundos inteiros nos mesmos nadas que podiam acabar sendo nossos leitos de morte”.

Mau hábito foi publicado no Brasil pela editora Record sob o selo Amarcord com tradução de be rgb; também ganhou uma edição pela Tag Curadoria (Foto: TAG)

O ponto de partida é a infância e os períodos que antecedem a adolescência e a temida puberdade. No meio do caminho, o livro se dedica ao encontro do primeiro amor, numa parcela de páginas carregadas de simpatia e utopia. É lindo de se ler, e mais ainda de experienciar em segunda mão tal sentimento, daquele tipo que serve de eclipse para o resto do mundo e marca a ponto de sangrar.

Dos eventuais desapontamentos, a história carrega a personagem de mentora a mentora. Mulheres trans que, seja crescendo no vilarejo dela ou habitando territórios ainda inexplorados de Madri, guiam a menina pelo amadurecimento. Diferente de outras histórias que optam pela violência deflagrada e esticada, aqui um episódio de ódio tira a autonomia da personagem fora das páginas.

“Ser trans me obrigou a amadurecer rápido demais no que se refere a autoconhecimento, mas me manteve pueril e insegura nas relações mais próximas da minha vida”.

Para acompanhar a leitura, Alana elaborou uma longa playlist, usando canções que menciona na obra e outras que conversam com os temas dela (Foto: Reprodução)

Uma década e meia depois do evento, a personagem decide retomar a verdadeira identidade, disposta, igualmente, a recuperar parte do tempo perdido. Mau hábito nos leva a uma Espanha indisponível nos setores de cuidado e saúde, povoada justamente pelos preconceitos herdados do lado de lá do mundo. Alana S. Portero, ciente do poder de sua própria vida, compartilha as pílulas com o intuito de preencher essas lacunas. 

“Ela precisava de mim para cuidar de seu corpo e lhe oferecer a dignidade que a doença lhe tirava, eu precisava dela porque sua companhia estava devolvendo minha vida”.

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