O que seria do Conde Drácula no século XX? Como o lorde reagiria aos avanços e ao novo modo de viver da sociedade? Na cidade grande, é capaz de ser atropelado por um táxi amarelo ao atravessar a rua fora da faixa. Assim definiu Tabitha King, que alimentou no marido a chama de curiosidade sobre o assunto.
Para evitar a modernidade tão latente, a história de Salem se passa numa cidade interiorana que, de tão pacata, quase some no mapa. Publicado originalmente como A Hora do Vampiro, título que entregava a virada da história logo de cara, o livro foi o segundo que Stephen King publicou na carreira — e até ganhou o posto de favorito do autor.
“Aquelas marcas não eram arranhões. Eram furos”.
São vários os personagens que habitam Jerusalem’s Lot, carinhosamente apelidada de ‘Salem’s Lot, uma singela ocupação no meio do Maine, populada por pequenos comerciantes e idosos fofoqueiros. Quando o escritor Ben Mears chega ao local, de onde foi tirado aos quatro anos depois de eventos traumáticos na família, os olhos crescem à imagem do forasteiro.
Salem tem uma mitologia vasta: nos anos 50, um fogaréu de proporções apocalípticas assolou a região e quase apagou a cidade da existência. Há, também, casos de desaparecimentos e mortes suspeitas. Sem falar na Mansão Marsten, o casarão místico que observa cada curva e vegetação da cidade.

Lá, morou Hubie Marsten, um palerma envolvido em todo tipo de confusão que, no fim da vida, atirou na cabeça da esposa e se enforcou no quarto do casal. Como todo bom livro de King, aqui o fantasma do homem atua como premonição e demônio de estimação dos personagens.
Mas Ben não foi o único novo morador do local, que recebeu também o misterioso Sr. Straker, de aparência esquisita, careca lustrosa e muito interesse na loja de antiguidades que acabou de abrir com seu sócio, Sr. Barlow, uma figura emblemática, a quem os moradores logo direcionam questionamentos e juízo de valor.
“Na noite anterior, Matt Burke enfrentara essa coisa malévola, e o medo lhe provocara um ataque cardíaco. Mark Petrie também a enfrentara, e dez minutos depois dormia profundamente, ainda segurando a cruz de plástico como um bebê segura um chocalho. Essa era a diferença entre homens e meninos”.
Não temos para onde correr: os vampiros alimentam uns aos outros e vão aumentando a colônia ao anoitecer, e no momento que Ben, o professor Matt Burke, o médico Jimmy Cody, o padre Callahan e o jovem Mark Petrie entendem para qual direção o vento está soprando, resta pouco a ser feito.
Nem o amor caliente de Ben pela virginal e inocente Susan Norton sobreviverá aos piores pesadelos que King consegue esculpir. Menos Drácula e mais Invasores de Corpos, o livro alimenta a sensação de perturbação que se protubera no campo da imaginação.
“Por terríveis que fossem os ruídos e as possibilidades, por pior que fosse o desconhecido, havia algo ainda pior: olhar a Górgona no rosto”.
Aos poucos, as vítimas se avolumam e os mocinhos diminuem em ímpeto e poder de retaliação. Temos, aqui, muito da atmosfera polifônica que o autor iria aperfeiçoar em It – A Coisa, mas na chave simples de um grupo pequeno de personagens e sem a megalomania que a ascensão de Pennywise causava em quem lê, com saltos temporais, múltiplos pontos de vista e o aceno ao horror cósmico.
Real e muito palpável, o medo de Salem é uma mensagem que King reverbera sem sinal de cansaço: as instituições falharam, a sociedade está condenada a viver na escuridão, sem amparo ou esperança. Escrito entre 1972 e 1975, período de instabilidade política nos Estados Unidos, o conto da cidade assolada por sanguessugas é mais um entre as revitalizações especiais que Stephen King escreveu na atmosfera da cultura.
“Mark não sabia disso, mas sabia que a hora do vampiro se aproximava”.
Deixe um comentário