Celebrar Ney Matogrosso em vida é uma das dádivas de Homem com H, filme em que Esmir Filho mistura os momentos de brilhantismo do artista com as batidas esperadas de uma cinebiografia abrangente. No centro do palco, a performance de Jesuíta Barbosa joga tudo nas costas da metamorfose gritante e no olhar que fuzila enquanto encanta.
Em momentos destacados da origem de Ney, com acenos ao erotismo de Claire Denis e uma ensolarada parcela de amor e desejo no Rio de Janeiro, o longa se constrói pela catarse musical da evolução do protagonista. Do trato brutal no seio da família, sua reformulação nos anos da Aeronáutica e a sucessiva série de rupturas emocionais e físicas da carreira como vocalista e intérprete, Homem com H decanta o selvagem em contraste ao puro.

Barbosa, abençoado pela mentoria de Matogrosso, se equilibra entre a sensação de prisão e o ato de eclodir e, como a dedicatória revela, de ousar ser. Ao lado dos Secos e Molhados, ele se destaca pela visão, mas é junto de Cazuza (papel de Jullio Reis, noivo de Manu Gavassi!), que o ator melhor encapsula suas qualidades de bicho e bicha.
Nas cenas que recriam shows e números complexos de figurino, maquiagem e arranjo, a direção de Esmir Filho se mescla ao cerne artístico de Ney, numa dança de acasalamento que eterniza na ficção parcelas indistinguíveis de realidade. Com jogo de luz e sombra, figuras rubras se engolem sob a voz do cantor.

Até no contexto político-social sobra espaço para pequenas experiências de catarse, como na cobra que escala a cama de Ney quando a epidemia da AIDS esburacou as relações de amizade e afeto do homem. A culpa por passar ileso, no que tange a saúde pessoal, pesa as decisões e as ações na década mais brutal e devastadora de sua vida. A serpente, recebida não com susto ou violência, é gentilmente amparada, em zelo e sabedoria.
Menos transgressor que sua contraparte biografada, Homem com H pulou dos cinemas para a distribuição nacional da Netflix, numa manobra que novamente revela o sucateamento das regulações de streaming, mas ao menos torna a experiência num eclipse coletivo, em harmonia e uníssono da arte, vida, marca e importância de uma pessoa tão maior que os protocolos e as normas.

Na direção de fotografia, Azul Serra inspira-se no surreal para desmontar Ney em closes, ângulos, cores e sombras. E, mesmo quando o filme se localiza no interior regional e na distante relação familiar, amparado pelas performances de Rômulo Braga e Hermila Guedes, a câmera mostra-se afoita e ciente de tal clausura.
O design de produção de Thales Junqueira, aliado ao trabalho de cenografia realizado por Cissa Saraiva, transforma cada objeto em artefato histórico. Filho até brinca com a realidade, devolvendo a Ney o quadro que Keith Haring pintou e se perdeu nas frestas do tempo. Aqui, o sexo é celebrado como ritual de sedução e de armadilha, na transmutação de carne e suor como elemento iluminador para o cantor.
Com relances de criatividade que ultrapassam as convenções da cinebiografia musical de grandes ícones do repertório nacional, Homem com H simplifica, e transmite o recado com certa eficiência. No fundo da garganta, fica o resquício amargo que Ney poderia, à luz de tudo que fez, ganhar um filme tão estridente e voluptuoso como sua inspiração.
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