Stephen King não queria que Carrie fosse um livro. Tampouco buscava insistir no projeto, já que foi da lata de lixo que a esposa Tabitha tirou o manuscrito de poucas páginas, destinado primeiro para a seção de contos de uma revista de terror e literatura da época. Ocupado com seu trabalho no magistério, King só voltou atrás e desatou a digitar na máquina de escrever por insistência dela, que enxergou na origem da adolescente telecinética uma possível mina de ouro.
Tabitha acertou na mosca. Publicado em 1974, Carrie alavancou King da profissão de subsistência para uma posição agradável como escritor. O livro vendeu para burro, quebrou recordes com a edição paperback e não demorou a atrair o interesse do cineasta Brian de Palma, que comandou a adaptação dois anos depois. O resultado impregnou-se na cultura pop, indicou Sissy Spacek e Piper Laurie aos Oscars de atuação numa quebra de tabu histórica e deu início a uma carreira literária que dura décadas e não dá sinal de cansaço ou acomodação. No Brasil, a Suma publica o autor, com tradução de Adalgisa Campos da Silva.
“Tanto os médicos como os psicólogos que se ocuparam do caso estão de pleno acordo que o início traumático e excepcionalmente tardio do ciclo menstrual de Carrie White podem muito bem ter sido a mola que acionou seus poderes latentes”.

Espécie de tábula rasa de toda a mitologia que King construiria ao redor da região do Maine, a história de Carietta White é mais trágica e triste do que assustadora. Acometida por episódios de forças descomunais e descontrole mental, a adolescente completa 16 anos sem nunca ter menstruado. E, quando o sangue desce, ela se vê desamparada e alvo dos mais grotescos comentários e comportamentos
A cena em que, no banho comunitário depois de uma aula de Educação Física, Carrie vê o rubro e viscoso líquido escorrer pelas pernas, manchando o áureo piso do chuveiro, é icônica e incontestável. A ideia veio a King quando ele leu sobre menstruação tardia e telecinese, em textos separados, e decidiu juntar uma coisa à outra.

“Em meio ao luto por duzentos mortos, diante da destruição de uma cidade inteira é tão fácil esquecer uma coisa: éramos crianças! Apenas crianças. Crianças, tentando resolver um problema da melhor maneira possível”.
Na casa ultra religiosa e profana de Margaret White, uma viúva charlatã que despreza o moderno e roga a um Deus cruel, a filha Carrie atua como cordeiro sacrificial. Ora por horas a fio, e quando a mãe bem entende, é trancada num quarto cheio de pregos, decorado com a figura do pobre Cristo em sua eterna pose de sacrifício. O que Margaret não sabe, porém, é que os anos sucessivos de abuso e violência despertam na adolescente uma fúria não apenas incontrolável, mas inevitável de ser acordada.
Entre relatos jornalísticos, atas de tribunais, entrevistas com os agentes da lei, trechos de livros e pequenas memórias dos raros sobreviventes da cidade de Chamberlain, Stephen King costura o início e a queda de Carrie com lentes de misericórdia e lamentação. Ela é atacada por ser diferente e não lutar para se encaixar, num período em que os Estados Unidos eram linha de frente para qualquer convenção incomum ou desafiadora das normas regentes.

“Está é a garota que eles insistem em chamar de monstro. Quero que gravem isto bem. Uma jovem que fica satisfeita com um copo de cerveja e um hambúrguer depois de seu único baile na escola, para que a mãe não fique preocupada…”
Tratando-se de uma história direta sobre preconceito e consequência, Carrie proliferou-se no imaginário cultural, rendendo um trio de filmes com recepção divergente, uma sequência massacrada, um musical destacado pela criatividade, e um espaço marcado no que diz respeito ao pior cenário possível nos bailes de formatura. A comunidade LGBTQIAPN+, acostumada a se reconhecer no que o Terror e o Horror enquadram em seu horizonte, também adotou a garota ensanguentada como símbolo de perseverança e, por que não, um tantinho de revolta.
O final, trágico e desesperançoso, imortalizou a adolescente pura, batizada com o mais vil dos rituais de amadurecimento. “Sangue de porco para aquela porca”, define um dos agressores, que logo seria mais uma das vítimas do fogo, da eletricidade, da demolição e da desmedida psique de Carrie White. Atual no trato da adolescência como celeiro para a rejeição máxima, Stephen King reviveu o interesse do leitor pela ficção de terror e criou ali uma das titãs do meio.
“Não seria exato dizer agora que Chamberlain nunca mais será a mesma. Seria mais correto dizer que Chamberlain nunca mais será nada”.
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