Ah, o Grammy! Aquela premiação anual que, em teoria, celebra a excelência da Música, mas frequentemente serve como um desfile de lobbies. A edição de 2024, realizada no dia 4 de fevereiro, no entanto, conseguiu se superar na arte de ignorar talentos genuínos. E quem foi a vítima da vez? Raye, a dona de um dos álbuns mais impactantes e emocionantes de 2023, My 21st Century Blues.
Vamos recapitular: Raye não é novata. Sua carreira começou cheia de promessas, com faixas independentes que causaram burburinho, um contrato com uma grande gravadora e uma sequência de singles de sucesso, como Decline, Check e Cigarette. Nos anos seguintes, conquistou discos de prata, ouro e platina enquanto dominava o pop britânico. Mas em 2021, cansada de ser silenciada, a cantora expôs nas redes sociais as recusas da gravadora em lançar um álbum completo, acompanhando as críticas com uma live no Instagram em que tocava as “faixas explosivas” que foram deixadas de lado.
Quando finalmente se libertou desse inferno corporativo, a cantora britânica lançou um álbum completamente independente e incrivelmente pessoal. My 21st Century Blues não é só música; é uma carta aberta sobre traumas, lutas e resiliência. É pop? Sim. É soul? Também. É puro sentimento encapsulado em notas que te fazem querer dançar e chorar ao mesmo tempo. E mesmo assim… nada de Grammy para ela.
Irônico, né? A Academia adora posar como a grande defensora da “autenticidade” e da “arte acima do comercial”. Mas quando aparece alguém que realmente personifica todas essas qualidades – uma mulher negra, escrevendo e produzindo sua própria música, enfrentando a indústria com coragem – o que eles fazem? Dão o troféu de consolação da invisibilidade.
Vamos falar sério aqui, o que mais Raye precisava fazer para ser reconhecida? Um álbum que explora temas como misoginia, violência sexual (Escapism, alguém?), saúde mental e dependência química, tudo isso com uma sonoridade impecável e letras que cortam como faca. Enquanto isso, artistas com músicas que poderiam ser trilha de comercial de supermercado recebem indicações de sobra. Será que o Grammy realmente ouviu My 21st Century Blues, ou estavam ocupados demais conferindo a lista de contatos da indústria?
E aí está a cereja do bolo! Enquanto o Grammy faz ouvido de mercador e finge que Raye é só mais uma no meio da multidão, o BRIT Awards de 2024 a consagrou como a artista mais premiada em uma única edição na história do evento. Histórica. Mas, claro, no universo paralelo do Grammy, isso não significa nada. Porque quem se importa com recordes, aclamação crítica e um impacto cultural gigantesco, né?
O que torna essa omissão ainda mais gritante é o poder das músicas que compõem o álbum. Por exemplo, a própria Escapism, o maior hit da carreira de Raye até agora, é uma experiência avassaladora. É quase como se estivéssemos em um Uber sem fim, imersos em uma jornada marcada por álcool, drogas e aquele desejo de vingança que todo mundo já sentiu depois de um término. E não é só a história que cativa; a estrutura da música, que foge completamente do convencional, lembra o lado mais experimental do R&B e do Jazz. É um hino de caos emocional e ainda assim, aparentemente, passou despercebido pelos ouvidos “refinados” da Academia.
Enquanto isso, outros momentos do álbum oferecem ainda mais camadas da complexidade. Black Mascara pega o som dançante que um dia foi a base de sua carreira e o transforma em algo quase alucinógeno, com uma profundidade emocional que rejeita o escapismo simplista. Ao contrário do que o título sugere, não há glamour em usar álcool para anestesiar a dor – e essa honestidade brutal é a marca registrada de Raye.
Nem tudo em My 21st Century Blues é perfeito, e isso faz parte de sua humanidade. Faixas como Thrill Is Gone e Worth It têm uma vibe old-school que, embora destaque a potência vocal de Raye, parecem um pouco confortáveis demais. É no inesperado que ela brilha mais, como em Flip a Switch, onde entrelaça guitarras e elementos eletrônicos sobre um ritmo de dancehall – aqui, ela mostra seu lado mais ousado, explorando letras provocativas com um toque de sensualidade sombria.
Environmental Anxiety, por exemplo, tenta abraçar tantos temas – da crise climática à política contemporânea – que acaba tropeçando em sua própria ambição. Mas sim, continua um hino. Buss It Down, por outro lado, peca na escolha do coral gospel, que poderia elevar a música, mas aqui soa como uma escolha previsível, quase genérica. O mesmo vale para Five Star Hotels, cuja pegada com flow triplicado e auto-tune se aproxima de alguns clichês estilísticos.
No entanto, essas falhas são pequenas quando comparadas à força do restante da obra. A versatilidade da compositora se estende às baladas mais reflexivas e carregadas de blues, como Mary Jane e Ice Cream Man. Essas duas faixas não apenas apresentam refrões cativantes, mas também se destacam por suas letras profundamente impactantes. Em Mary Jane, ela se despede da maconha e do álcool, compondo um adeus honesto e comovente aos vícios. Enquanto Ice Cream Man utiliza uma melodia minimalista e envolvente para abordar a experiência de agressão sexual vivida pela artista.
Esse equilíbrio entre fragilidade emocional e força lírica se revela ainda mais em faixas como Oscar Winning Tears e Hard Out Here. Se a primeira é ambígua em seu alvo – uma relação pessoal ou uma metáfora para as decepções na indústria musical –, a segunda é um ataque direto aos desafios de navegar em um ambiente dominado por “todos os idiotas e os CEOs brancos”. A raiva de Raye é palpável, uma energia feroz que transforma sua indignação em arte.
E então a Academia olha para isso tudo e pensa: “Hmm, talvez ano que vem!” Ah, claro, porque obras-primas como essa aparecem todos os dias. Talvez se Raye tivesse dado um passo para trás, assinado com uma gravadora gigante novamente e diluído sua autenticidade em algo mais palatável, ela teria tido uma chance. Mas, honestamente, ainda bem que ela não fez isso.
Mas eis que chega a edição de 2025, e o Grammy, numa tentativa desesperada de limpar sua barra, resolve finalmente abrir os olhos para o óbvio: Raye é uma das vozes mais autênticas e talentosas da música atual. Não que a Academia tenha magicamente descoberto a profundidade do My 21st Century Blues, claro. Provavelmente foi o clamor popular, o sucesso estrondoso de obras como Oscar Winning Tears e Ice Cream Man, e a chuva de prêmios menores que Raye conquistou no último ano.
Entretanto, depois do completo descaso em 2024, era de se esperar que a Academia fosse com tudo, certo? Talvez uma enxurrada de indicações para honrar a excelência da cantora britânica e sua relevância cultural. Mas o que acontece? Três míseras indicações: Artista Revelação, Compositor do Ano Não-Clássico e Melhor Engenharia de Som de Álbum Não-Clássico.
Vamos destrinchar isso. A indicação a Artista Revelação já começa com um gosto amargo. A indicação a Compositor do Ano é, no mínimo, irônica. É quase como se o Grammy quisesse reconhecer que ela é brilhante, desde que essa genialidade esteja a serviço de outros artistas ou dentro de um contexto mais técnico. Como se não fosse suficiente ela ser a força criativa e a alma do My 21st Century Blues.
E, por fim, Melhor Engenharia de Som de Álbum Não-Clássico. Não me entenda mal, o trabalho técnico da sua discografia é impecável, e os engenheiros de som merecem o reconhecimento. Mas essa indicação soa mais como um prêmio de consolação. Essas escolhas não são apenas um reflexo de como a Academia ainda não sabe lidar com artistas que desafiam o status quo; são também um lembrete de que o Grammy, no fundo, tem medo de ousar. Porque indicar Raye para Álbum do Ano, Gravação do Ano ou até Performance Pop Solo exigiria admitir que ignoraram um dos maiores talentos da atualidade no ano anterior.
E, sinceramente, é desrespeitoso. Raye não deveria estar recebendo migalhas. Ela deveria estar no centro do palco, sendo celebrada pelo impacto que teve na música e na cultura pop e no Jazz. Porque enquanto o Grammy tenta corrigir o erro de 2024 com gestos mínimos, o público já está muito à frente, reconhecendo o My 21st Century Blues como o marco que é.
Uma coisa é certa, talvez os jurados do Grammy precisem de um GPS musical, porque parece que perderam completamente o caminho para onde a relevância está acontecendo. Spoiler: está em Londres, e o nome dela é Raye.
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