“Isso foi antes da internet”, alerta Elizabeth Lennard ao citar todo o percurso homérico para chegar a Ryuichi Sakamoto e dar vida a Tokyo Melody – documentário que hoje é retrato da sinfonia urbana da Tóquio dos anos 1980. O caminho até Sakamoto se desenhou de uma forma possível apenas numa era analógica, cujo acaso e as coincidências ainda eram vitais no processo criativo. “Sempre achei um mérito dele ter me dado permissão”, afirma.
Mas Tokyo Melody não é apenas produto do acaso. O trabalho da diretora nova-iorquina crescida na Califórnia emerge na reflexão do tempo, em uma era repleta de imagens digitais e narrativas que se dobram para caber em segundos de atenção. Exibido em versão restaurada na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme de 1985 – agora consagrado como clássico cult – reflete a abordagem reflexiva de Lennard com a arte, influenciada pelo trabalho teórico de Marshall McLuhan: o meio, portanto, é tão importante quanto a mensagem.
De Paris, Elizabeth Lennard conversou com o Tesoura com Ponta sobre o contexto de criação de Tokyo Melody, relembrou a primeira exibição do filme em São Paulo, na Mostra de 1986, e comentou sua trajetória e experiências – desde a conexão com a cena musical e contracultural dos anos 1960-70 até os desafios de seu mais recente filme, Rosl’s Suitcase, inspirado em uma história familiar envolvendo a Alemanha nazista. As artes que ilustram a entrevista são de Lennard.
Como surgiu a ideia de Tokyo Melody? Por que Ryuichi Sakamoto?
Elizabeth Lennard: Tive a sorte de assistir à estreia de Furyo – Em Nome da Honra (ou Merry Christmas, Mr. Lawrence), de Nagisa Ōshima, no Festival de Cannes, onde vi pela primeira vez Ryuichi Sakamoto e onde descobri sua música.
Ao sair do cinema, encontrei Muriel Rose, então produtora do Institut National de l’Audiovisuel (INA), com quem eu havia tido um breve contato porque o INA havia co-produzido meu primeiro curta-metragem sobre um conto dos Irmãos Grimm, feito com minha irmã, a partir de fotografias pintadas à mão. (The Wonderful Travellers está atualmente sendo restaurado e será exibido em 24 de novembro em um festival chamado Tenth Annual Report of Camera Obscura, em Petaluma, Califórnia).
Então Muriel comentou que, se eu conseguisse entrar em contato com Sakamoto, o INA talvez pudesse bancar a produção de um documentário. Eu não sabia como abordá-lo, mas disse que pensaria no assunto. Isso foi antes da internet, e as máquinas de fax ainda eram raras.
Pouco tempo depois, eu estava no centro de Manhattan, jantando no Odeon’s, um restaurante badalado. Em uma mesa próxima, reconheci Jeff Aeroff, um executivo da A&M Records, que já havia me contratado em Los Angeles para criar capas de álbuns com fotografias minhas pintadas à mão. Lembrei que a A&M Records já havia me dado lançamentos do YMO (Yellow Magic Orchestra), o grupo que Ryuichi Sakamoto também fundou.
Fui até a mesa de Jeff para cumprimentá-lo e perguntei se ele poderia me colocar em contato com Sakamoto. Jeff disse: “Você está com sorte, essa aqui ao lado é a pessoa que acompanhou o YMO na turnê pelos EUA”. Assim conheci Kiki Miyake. Kiki conseguiu me conectar com Ryuichi, que estava indo para um estúdio em Berlim gravar uma versão vocal de “Forbidden Colours” com David Sylvian.
Voltei à Europa. Em Berlim, fui diretamente ao estúdio, localizado na época ao lado do Muro de Berlim. Eu já havia feito alguns curtas-metragens, incluindo um documentário sobre as Labeques [Katia & Marielle], um duo de pianistas irmãs. Lembre-se que esse era o mundo antes dos celulares e computadores… Tudo que pude mostrar a Ryuichi para convencê-lo a me deixar fazer um documentário sobre ele – já uma grande estrela no Japão – foram alguns cartões-postais de fotografias minhas pintadas à mão. Sempre achei um mérito dele ter me dado permissão. Anos depois, soube que, na verdade, Ryuichi era muito tímido e, como não me considero uma pessoa intimidadora, talvez isso tenha ajudado!
Poderia falar um pouco sobre o processo de produção do filme? Houve desafios durante as filmagens?
E.L.: A ideia por trás do filme era retratar Sakamoto e os sons de Tóquio. Nosso orçamento era limitado e me proporcionou apenas uma passagem de ida e volta ao Japão para explorar locais e obter a permissão final de Sakamoto. Sem falar japonês, meu único companheiro era o detalhado livro-guia Nagels. Coincidentemente, eu estava em Tóquio durante o Festival Anual das Cerejeiras e escolhi alguns locais devido às belas decorações. Quando voltei em maio para filmar, essas decorações já não estavam lá, e tive que escolher rapidamente outros lugares. Um deles foi a Tokyo Tower, conhecida como a “Torre Eiffel de Tóquio”.
O grupo de Sakamoto, Yellow Magic Orchestra, havia se dissolvido pouco antes – o YMO era conhecido como os “Beatles” do Japão. Sakamoto circulava pela cidade protegido em sua limusine particular. Levamos ele até a Tokyo Tower para termos uma visão da cidade. Assim que começamos a filmar Sakamoto no andar superior da torre, um grupo de estudantes em excursão o reconheceu. A multidão cresceu, e Jean-Roger Sahunet, nosso produtor de linha, instruiu que parássemos de filmar.
Outra momento foi no Festival de Sanja, em Asakusa. Lutadores de sumô e pessoas da comunidade desfilam com santuários portáteis do Templo Sensoji. Um lutador de sumô pegou a câmera 16mm do diretor de fotografia, Jacques Pamart, e sugeriu vigorosamente que Pamart trocasse de lugar com ele, carregando o santuário enquanto o lutador filmava. Pamart não teve escolha – o homem era duas vezes maior que ele. Quando retornamos a Paris com os rolos de filme, ficou claro que as marcações de sincronia da câmera haviam se quebrado exatamente nesse momento. A montadora Makiko Suzuki passou longas horas ajustando manualmente as filmagens com o som, incluindo a música assincrônica do festival.
Perguntei ao Sakamoto-san se ele poderia sugerir uma locação para filmarmos. Ele mencionou os chamados “apartamentos suicidas”, porque as pessoas iam lá para isso. São os prédios tingidos de azul que aparecem no filme. Como você sabe, tenho carreiras paralelas; além de fazer filmes, sou também fotógrafa de arte, pintando minhas fotografias em preto e branco – muito antes da invenção do Photoshop –, então foi natural tingir o complexo de apartamentos de blocos de cimento.
Algo muito interessante no filme é que não parece haver um começo, meio e fim claros – o que, na minha visão, reflete também o trabalho de Sakamoto.
E.L.: Sim, bem observado. Tokyo Melody ecoa uma abordagem “McLuhanesca” (como em Marshall McLuhan): O meio é a mensagem, com a qual cresci graças ao meu pai sociólogo – e, coincidentemente, Sakamoto, que me contou na entrevista que isso influenciou sua composição musical também.
Um momento memorável em Tokyo Melody é quando Ryuichi e Akiko Yano tocam piano juntos. Isso foi planejado?
E.L.: Não, não havíamos planejado filmar o dueto com Ryuichi e sua esposa musicista à época, Akiko Yano. Perguntamos se poderíamos levar nossa equipe até a casa deles e Ryuichi nos disse que, de acordo com a tradição japonesa, a esposa era a chefe do lar e ele precisava pedir permissão a ela. Ela gentilmente deixou e, no último momento, aceitou tocar um dueto. Descobri apenas recentemente que essa pode ser a única vez que eles foram filmados tocando juntos em casa.
Tokyo Melody alcançou um status cult, e 40 anos depois teve uma exibição especial em versão restaurada em 4K na 48ª Mostra de São Paulo. Você esperava essa repercussão?
E.L.: De forma alguma. Mas me lembro que, quando Tokyo Melody foi apresentado na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo em 1986, fizemos uma cópia especial legendada em inglês para a exibição. O rolo de filme foi devolvido à França com vários quadros (frames) faltando. Eles haviam sido cortados como “souvenirs”! Guardei a cópia e no ano passado, antes de Tokyo Melody ser restaurado, fui contatada pela Japan Society de Nova York, interessada em exibir o filme. Quando examinamos o rolo para verificar se ainda era “exibível”, descobrimos que outros quadros também haviam desaparecido.
Você começou sua carreira na fotografia aos 16 anos. Houve alguma “transição” para o cinema? Ou fotografia, artes visuais e cinema sempre estiveram relacionados na sua vida?
E.L.: Não sei se você poderia chamar isso de “uma carreira” aos 16 anos, mas na Berkeley High School, nos anos 1960, eu já fazia filmes em 8mm e filmes experimentais com luzes [lighshow movies] com os irmãos Franklin – Warren e John. Warren Franklin foi trabalhar no Industrial Light & Magic de George Lucas, e descobri muito tempo depois que ele havia mostrado nossos filmes como credenciais a Lucas!
Depois, no San Francisco Art Institute, estudei fotografia, desenho, gravura e cinema experimental. Meus professores eram artistas de cartazes psicodélicos ou cineastas experimentais da época. As fronteiras entre as mídias não eram um problema.
Você está com um novo documentário, Rosl’s Suitcase. Poderia falar um pouco sobre?
E.L.: Depois de fazer documentários sobre escritores e artistas como Edith Wharton, Gertrude Stein, Serge Poliakoff… Escolhi fazer um filme autobiográfico – ou talvez ele tenha me escolhido.
Quando minha mãe faleceu em Sausalito, Califórnia, encontrei uma mala em seu porão que havia pertencido à minha avó vienense. Dentro dela estavam cartas e documentos que contam – com uma lacuna de tempo – um pequeno capítulo sobre o impacto da anexação da Áustria pelos nazistas na população de Viena.
Rosl’s Suitcase [Mala de Rosl] conta a história da minha avó judia, que deixou Viena rumo a Nova York com meu pai em 1939: o conteúdo da mala revela discrepâncias no que me foi contado. Para a naturalização nos EUA, Rosl, a minha avó, escreve à administração nazista pedindo o divórcio do meu avô. Ele ficou na Áustria e, após 1941, nunca mais foi visto. Rosl’s Suitcase entrelaça a Viena dos dias atuais, filmes caseiros e gravações de três gerações de mulheres: gravações de 1947 da minha tia-avó Ada, após sua chegada aos EUA; descrições em áudio de minha tia Helen sobre sua juventude em Viena e imigração para Nova York; e meus próprios filmes experimentais em 8mm dos anos 1960, no norte da Califórnia.
Em Rosl’s Suitcase, Adah Dylan Jungk, cantora de origem vienense, lê/interpreta as cartas de Rosl em meio a projeções de fundo da Alta Corte de Viena, do pátio da Universidade [de Viena] e de filmes de guerra. Seguimos Adah até “locais de memória”, alternando entre os lugares hoje e os mesmos locais mencionados nas cartas, mostrados em fotografias.
Os marcos de Viena são revitalizados pelo prisma da minha avó, do meu pai e da minha própria perspectiva da Viena pré e pós-guerra. Adah está “no comando” de um diálogo – substituindo aqueles “especialistas de cabeça falante” dos documentários –, acompanhando essa investigação pessoal. Às vezes, ela assume o papel de Rosl, a escritora das cartas; outras vezes, lê uma carta ou traduz um documento sobre meu avô. Revisitar esses locais lembra meu trabalho em Tokyo Melody, em que Tóquio é vista pelos olhos de Sakamoto.
Então, para finalizar, quais artistas inspiram seu trabalho? Diretores, escritores, fotógrafos, músicos…
E.L.: Como adolescente na área da Baía de São Francisco, tive o privilégio de assistir a shows de músicos agora míticos: Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Doors, Jefferson Airplane, para citar alguns. Nos anos 1970, em Los Angeles, quando eu trabalhava criando capas de álbuns, às vezes era convidada a assistir a sessões de estúdio.
No meio dos anos 70, fugi da indústria cinematográfica sexista de Los Angeles e da UCLA Film School, onde estudei. Em Paris, conheci a escritora/diretora Marguerite Duras e trabalhei em seus filmes. Observar uma diretora mulher, seguindo seu próprio caminho criativo, foi uma inspiração.
E do Brasil? Você gosta de alguma obra brasileira?
E.L.: Consigo responder facilmente: Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos. Também gosto de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha, com quem me encontrei algumas vezes em Paris. Mas eu precisaria rever os filmes, pois já faz muito tempo...
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