A fama que ganhou com Pessoas normais não fez o bem que Sally Rooney esperava: na verdade, a atenção, de mídia e audiência, causou certo desconforto na irlandesa, que usou a série de entrevistas do lançamento de Intermezzo para esclarecer sua posição. Nada de adaptações novas, pelo menos por enquanto. E se o quarto romance serve de exemplo, a intrincada narrativa psicológica infligida nos personagens principais é mais do que motivo para evitar as telas e focar nas páginas.
Agora, mais uma vez na Companhia das Letras e pela tradução cuidadosa e efervescente de Débora Landsberg, ela abandona a visão feminina que permeou os trabalhos anteriores e escreve sobre dois irmãos. Separados por 10 anos e unidos pela recente morte do pai, decorrente de um longo câncer, Peter e Ivan não poderiam estar mais apartados. O primeiro, aos trinta e dois anos, advoga como ninguém e coleciona namoradas. O segundo, com vinte e dois, só quer saber de xadrez, área na qual se dedica desde a infância.
Quando Intermezzo começa, os irmãos, de sobrenome russo Koubek, são mais do que a alegoria moderna que Rooney puxa da obra de Dostoiévski e da filosofia que mergulhou na escrita; eles são arquétipos de todos os personagens criados pela irlandesa desde o começo da carreira. Experimental não é a palavra certa nem a definição justa do romance, que se espreguiça em pontos de vista distintos em forma e conteúdo, à base em que aproxima e afasta os homens. Peter é esbaforido, come frases, ajusta orações; Ivan é controlado, enxerga o mundo com todos os verbos e sujeitos comuns.
Rooney evolui, é claro, seus dotes artísticos, mantendo os diálogos que flutuam entre pensamentos e abolindo qualquer pontuação usual. Intermezzo é um livro complexo na densidade emocional, que vai sem medo nas inseguranças, medos, desejos e demônios de Peter e Ivan. No geral, a história se pauta no diálogo, interno e conjunto, que surge a partir do luto e da solidão. Os vícios, que o mais velho deságua no álcool e no namorico com Naomi, uma jovem de 23 anos que vive de favor numa ocupação na cidade, são tão perigosos quanto a falta de traquejo social de Ivan.
“Nem sei o que você quer, ela diz. Qualquer coisa que eu faça, nunca basta. Tem que ser a única coisa que não posso fazer, de repente essa é a única coisa que você quer. Parece que você está querendo me fazer sofrer só porque você está sofrendo”.
Tudo muda, como boa semente de Rooney, quando o enxadrista conhece Margaret, a responsável pela organização do torneio em que ele arrasa numa noite qualquer da gélida cidade europeia. Aos 36 anos, ela conta com um divórcio mal-resolvido nas costas, e não demora a se apaixonar pelo garoto. Questões de culpa latejam em cada interação da dupla, que demora a aceitar a inevitável posição das peças.
Imaturidade e responsabilidade estão a todo tempo se anulando na balança desequilibrada da vida dos irmãos, que pouco se falam e menos ainda se veem. A mãe, divorciada há tempos do pai morto, guarda rancor e certa indisposição com os filhos. É na casa dela, também, que reside, temporariamente, Alexei, o cachorro da família que está sem lugar para ficar.
O cabo de guerra emocional, que data dos anos de infância e da vasta diferença de idade de Ivan e Peter, não se calcifica nem alivia a tensão entre eles (“Sim, o que os dois têm em comum, no fim das contas, impacientes, ambiciosos, duros com os outros, duros também consigo mesmos”). No meio, uma antiga namorada do mais velho, Sylvia, também envolvida no imbróglio embaraçoso do presente entristecido, adiciona lenha na fogueira domiciliar. Se Rooney olhava para o amor e a amizade com lentes otimistas, desta vez ela se despreocupa dos rótulos.
Discutindo o habitual nó de classes, os aluguéis exorbitantes de Dublin e a influência do dinheiro nos relacionamentos modernos, Intermezzo é visceral na pintura de desigualdade e privilégios invertidos. Peter defende causas nobres no trabalho, mas não resolve um quê dos problemas que germinam no coração: a doença do pai, o acidente que a ex-namorada sofreu antes do término, o trabalho incomum que a atual companheira participa para bancar as contas.
E Ivan, imaturo na teoria, demora a florescer no quesito de aproximação interpessoal. Com Margaret, uma mulher preenchida pela percepção alheia e temerosa a todo movimento, ele alimenta um lado até então dormente da personalidade, que foi moldada primeiro imitando o irmão mais velho, e depois negando cada um de seus defeitos (“Entre ele e Margaret, naquele instante, Ivan sentiu uma intimidade que jamais poderia ser compartilhada por mais ninguém”). A masculina tóxica, comumente associada a violência física ou abuso verbal exagerado, é devolvida aos lugares de silêncio e rancor de onde sempre existiu, em áreas cinzentas e não tão polarizadas.
“Jamais deixar transparecer que ficou incomodada: testemunhar a uma distância educada sua substituição”.
Um salto corajoso, e igualmente arriscado, de Sally Rooney, Intermezzo prova seu valor inestimável à ficção estrangeira, em uma manobra nada preguiçosa ou repetitiva. Os personagens movem-se como no jogo de xadrez, em movimentos que prezam pela organização, pela seriedade e, inevitavelmente, pelo impulso. Aqui, a crise dos 30 engole qualquer euforia dos 20. A juventude é invejada e a maturidade é cobiçada.
Quem espera um repeteco dos temas que acabaram com os anos de formação de Connell e Marianne, encontrará uma evolução espiritual disso. O momento tão marcante quando, na vida adulta, restabelecem-se os laços familiares para além dos títulos de nascimento e sangue. A própria autora, no auge dos 33 anos, tem interesse no que está depois do mágico florescer do primeiro amor, do segundo término, primeiro luto e terceira decepção. E se, mesmo na Literatura, é possível mantê-los domados.
“Não era nem um sentimento de felicidade pura, mas de felicidade forte e confusamente misturada a muitos outros sentimentos. Tristeza, saudades do pai, e uma espécie de vergonha, porque cada dia parecia afastar Ivan ainda mais dele e da vida que tinham juntos, uma vida que ficava cada vez mais no passado, no âmbito da infância e da adolescência. A percepção de que na fase adulta, na qual agora está entrando de forma tão definitiva, e que vai se prolongar pelo resto da vida, será vivida sem o pai. De que está se tornando uma pessoa que o pai jamais vai conhecer”.
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