As notícias iniciais de Sr. & Sra. Smith, série-expansão do filme clássico da Tela Quente, começaram bem e então caíram no fosso. A dupla criativa, Donald Glover e Phoebe Waller-Bridge, imãs de aclamação e prestígio, foi desfeita. Ela saiu do projeto, de modo amistoso, por diferenças criativas. Entrou Maya Erskine como a senhora do título, e o resultado não poderia ter sido melhor.
Fantástica roteirista, criadora e estrela dePEN15, a atriz ganha a possibilidade de interpretar uma super-espiã em estado de crise e negação, em arrependimento por todas as escolhas que fez até o momento em que se inscreveu para o projeto atual. Ganha o nome-falso de Jane e conhece John (Glover), seu marido de mentira e parceiro de verdade. Juntos, vão entregar pacotes da confeitaria, injetar soro da verdade em bilionários e até viajar para uma estação de ski. De modo platônico, óbvio.
O que começa na frieza e na distância pessoal e física, logo descamba numa fábula sobre o nascimento e a morte de uma paixão. Criada por Glover e Francesca Sloane, da estupenda Swarm, a série de drama usa todos os clichês e arquétipos das comédias românticas e rotaciona seus mecanismos, fazendo desta versão de Mr. & Mrs. Smith um verdadeiro folhetim de espionagem.
Cada episódio ganha título de uma fase do relacionamento (Primeiro Encontro, Primeira Viagem, Terapia de Casais), mostrando através de ação e mistério, como dois profissionais treinados na arte de matar e se esconder não tem ideia alguma do que é preciso numa relação humana “comum”. Glover evolui a estética que depurou em Atlanta, e reúne boa parte do time criativo da série do FX.
Seu irmão Stephen escreve e produz, e sua mãe, Beverly, debuta na ficção vivendo a mãe de John Smith. Com o networking em dia, a produção conta com envolvimento de nomes e expoentes em ascensão da cena indie norte-americana. Entre roteiro, direção e produção, Mr. & Mrs. Smith escala responsáveis por Buzine por Jesus. Salve a sua Alma, She Dies Tomorrow, Fargo, e muito mais. Parceiro hábil de Glover, Hiro Murai comanda a estreia, First Date, e dá o tom frenético e hilariante.
Fica claro, porém, a intenção bem sucedida de não se dobrar sempre às piadas, por mais que dois comediantes estejam à frente da câmera. O humor sarcástico e inerte de Erskine é o contraponto ideal para a cara amigável de Glover. Em sintonia e antítese, o casal arma e desarma bombas físicas e emocionais. Pelas frestas das missões mortais, o roteiro desenvolve pequenos pontos de atrito e atração, como o grande tabu em soltar pum na frente do parceiro.
Submetida ao Emmy 2024 como Série de Drama, a manobra beneficia os protagonistas, mas faz brilhar o time de convidados. Não à toa, é campeã de indicações nas categorias secundárias, com a grata lembrança de John Turturro e Paul Dano no campo masculino, e de Michaela Coel, Sarah Paulson e Parker Posey na lista feminina. Triste notar a ausência de Wagner Moura, que faz bonito e até espirra em português no quarto episódio.
Se Turturro se destaca na breve participação em Segundo Encontro, no papel de um ricaço que perde os freios da língua, a presença de Dano é mais sutil. Como o Vizinho Gato, ele é taciturno e calmo, nas extremidades da casa luxuosa dos Smith. Coel começa como uma indesejável presença em Infidelidade, e se revela como loba em pele de cordeiro. De modo breve e marcante, a britânica rasga as primeiras feridas no casamento perfeito do casal.
Quem tenta suturar os machucados é justamente a comedida e um tanto aérea terapeuta vivida por Paulson, no oitavo episódio. Ela questiona e indaga, mas sabe que a raiz dos problemas do casal não está tão clara assim. E Posey, a megalomaníaca “Outra Jane” funciona tanto ao lado de Moura, quanto nas porções individuais de sua atuação, um reflexo futuro que a nossa Jane quer evitar, por mais que se veja enamorada e hipnotizada pelo senso de liberdade.
A Academia amou e devorou Smith, que disputa 16 estatuetas. Além das menções em Série, Ator e Atriz (e as muitas menções para os Convidados), concorre em Coordenação de Dublês, Performance de Dublês, Direção de Elenco, Supervisão Musical e Trilha Sonora. A trinca poderosa de Melhor Direção, Roteiro e Montagem de First Date também figura nas categorias dramáticas. Um show e tanto para a original Prime Video, num ano em que a safra televisiva se provou mais fraca que o esperado.
Sem medo de levar o drama e a ação à enésima potência, Sr. & Sra. Smith se afasta do ideal americano caucasiano do filme de Brad Pitt e Angelina Jolie, até tirando sarro das suposições e expectativas do público. Na primeira cena da série, um casal (Alexander Skarsgård e Eiza González) que muito lembra Brangelina é alvejado e deixado para sangrar até a morte; mesmo destino daqueles insatisfeitos com o elenco formado por um negro e uma asiática.
O roteiro é tão bem bolado e rico em nuances que as questões de raça, criação, classe e gênero estão diluídas nos dramas cotidianos e mundanos do casal. Por isso, é difícil apontar o dedo e decretar erros ou acertos de John ou Jane. Ao longo dos oito episódios, eles evoluem e retrocedem em suas jornadas. Sobra espaço até para um test drive de como é ter um filho, quando cuidam de um enjoado e mimado velhote, interpretado de modo sagaz por Ron Perlman. E uma crise de ciúmes, quando John esbarra em uma antiga namorada, papel de Úrsula Corberó.
Expoente do surrealismo negro que colocou Atlanta no mapa e transformou sua carreira no TV em um manifesto de criatividade e inovação, Glover disserta sobre relacionamentos e amor em tempos de modernidade e tecnologia. Não passa batido o aspecto quase tinderiano da agência que une os Smith e guia sua vida de missões, relatórios e tiros trocados. No fim das contas, todos querem amar e ser amados, não importa de onde são, do que gostam ou de quantas pessoas mataram antes de chegar ali.
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