Em um universo contendo uma ordem milenar de cavaleiros que preservam a ordem e a paz contra forças do mal, lutas com sabres de luz e armas à laser, o uso da Força para emanar poderes telecinéticos e tantos outros elementos fantásticos e de ficção científica, a decisão de trazer uma obra focada em Cassian Andor (Diego Luna), um personagem apresentado em Rogue One: Uma História Star Wars (2016) e cujo destino os fãs já conheciam, parecia estranha e, para muitos, desnecessária. Mas, às vezes, é muito bom estar errado.
Anunciada em 2018 e tendo sua estreia diretamente no Disney+ em 2022, Andor se inicia cinco anos antes dos eventos de Rogue One, e nos apresenta um Cassian muito diferente do que viemos a conhecer na luta para roubar os planos da Estrela da Morte. No primeiro episódio, nos é mostrado que o personagem foi levado ainda criança de seu planeta natal, Kenari, que passou por um desastre de mineração, e adotado por Maarva (Fiona Shaw) e Clem (Gary Baadle), dois saqueadores.
Já adulto, vemos Cassian em uma busca por sua irmã perdida, mas que acaba levando-o a um beco sem saída. Durante um confronto com dois oficiais, Cassian acaba por matar um deles acidentalmente, e, para cobrir seus rastros, executa o segundo a sangue frio — demonstrando logo de cara para o espectador o tom e abordagem apresentados pela série, muito diferentes do que estamos acostumados a ver no universo de Star Wars desde sua criação em 1977, por George Lucas. A partir desse momento, os atos do personagem colocam em andamento todo o desenrolar da trama da temporada.

Ferrix
Andor é divida em arcos de três episódios, mesclando diversos núcleos de personagens que, apesar de distantes e raramente juntos em um mesmo ambiente, mantém relações entre si e influenciam as vidas e decisões uns dos outros. Após o incidente que resultou nas mortes dos dois oficiais, Cassian retorna para Ferrix, planeta onde cresceu com seus pais adotivos, buscando criar um álibi. Antecipando uma investigação envolvendo o assassinato e pensando apenas em sua própria sobrevivência, ele pede para que Bix (Adria Arjona) arranje um encontro com um comprador do mercado clandestino, para que ele consiga dinheiro para desaparecer e escapar do Império.
Ao mesmo tempo, o oficial Syril Karn (Kyle Soller) busca de todas as formas ascender na estrutura corporativa burocrática, e decide se dedicar de corpo e alma a encontrar o culpado pela morte de seus colegas. Isso o leva a desobedecer as ordens de seu superior, levando um time armado até Ferrix para capturar Cassian.
Durante os três primeiros episódios, temos um grande foco na apresentação e familiarização com Ferrix e, mais importante, seu povo. A série toma seu tempo para construir os diversos personagens que ali estão, nos permitindo observar seu dia a dia e tradições, suas vontades e medos, de forma a nos aproximar e gerar uma afeição àquele local e às pessoas que vivem ali. Essa abordagem é um grande trunfo para Andor (uma jogada brilhante do criador e showrunner Tony Gilroy), trazendo um olhar mais humanizado e realista para o universo, focando nas pessoas comuns que vivem nele, e os efeitos do autoritarismo em suas vidas.

As narrativas convergem no encontro de Cassian com o contrabandista, o enigmático Luthen Rael (Stellan Skarsgård), que se revela um membro chave do que virá a se tornar a Aliança Rebelde. Luthen tenta convencer nosso protagonista a se juntar à luta contra o Império, e, mesmo contrariado, Cassian aceita — em parte pelo dinheiro, em parte porque a equipe de Syril está invadindo o local enquanto ambos conversam. Felizmente para o futuro da galáxia, os oficiais fracassam espetacularmente, e Cassian e Luthen conseguem escapar.
O Olho de Aldhani
No segundo arco da série, Luthen leva Cassian até o planeta Aldhani para se juntar à uma equipe rebelde. Lá, ele descobre que o plano é se infiltrar em uma guarnição imperial e roubar o pagamento do setor inteiro, para desestabilizar o controle do Império e garantir fundos para financiar a rebelião. O time não fica nada feliz com a adição de última hora, com tensões crescentes entre os membros, mas chegam a um acordo incômodo de que já foram longe demais para desistir agora.
É nesse momento que a série também expande os núcleos de personagens, nos apresentando dois novos pontos de vista. A primeira adição é Dedra Meero, uma supervisora do Escritório de Segurança Imperial extremamente eficiente e ambiciosa, interpretada aqui por uma brilhante Denise Gough, que nos mostra o cotidiano dos serviços de inteligência do governo. Ela erroneamente acredita que Cassian é um grande líder rebelde, e se torna uma grande ameaça ao desafiar seus supervisores em busca de eliminar qualquer célula rebelde antes que cresça fora de controle. Em dado momento, os caminhos de Dedra e Syril se cruzam, e a obsessão por encontrar Cassian só aumenta.
Em uma decisão muito acertada, Andor abandona a abordagem cartunesca do Império como incompetente e traz de volta sua imagem como uma instituição fria, calculista, cruel e que devora tudo e todos em seu caminho. Uma máquina assustadora, imparável. E a série o faz não por meio do “alto escalão”, como Darth Vader ou o Imperador Palpatine, mas nos trazendo para o ponto de vista de funcionários “normais”, que mantém a estrutura opressora funcionando no dia a dia, e estão, acima de tudo, buscando ascender dentro dessa estrutura — muitas vezes, por quaisquer meios que sejam necessários.

A outra adição ao nosso rol de personagens é uma velha conhecida da franquia, mas que nunca teve o destaque ou desenvolvimento (merecidíssimos) que recebe agora: a senadora Mon Mothma (Genevieve O’Reilly). Enquanto finge ser uma oposição moderada e inconsequente ao Império dentro da legalidade (ou o que restou dela), a senadora ajuda a desviar dinheiro para financiar a construção da Aliança Rebelde, à um grande custo pessoal. É por meio dela que temos contato com grande parte da trama política da série, mostrando o aparelhamento da máquina estatal pelo Imperador e o quanto o Senado existe apenas como fachada nesse momento.
“Aprendi com Palpatine. Eu mostro a pedra na minha mão, e você não percebe a faca na sua garganta. ” – Mon Mothma
Em meio às tensões crescentes, o time rebelde coloca em ação seu plano, aproveitando-se de um fenômeno celestial conhecido como o “Olho de Aldhani” para disfarçar seu ataque. Em uma sequência cinematográfica de encher os olhos (trocadilho totalmente intencional), o assalto é um sucesso e os sobreviventes do grupo realizam sua tentativa de fuga ousada durante a passagem pelo cinturão de cristais. O evento é um ponto de virada na luta rebelde; não apenas a equipe conseguiu escapar com uma enorme quantia em dinheiro, mas demonstrou uma organização e escala não previstas pelas forças de segurança e inteligência. Um golpe que o Império não vai esquecer, e nem deixar passar sem resposta.

Só uma saída
Após o sucesso do assalto em Aldhani, vemos Cassian adotando um disfarce no planeta turístico Nianmos. Tudo parece bem, até ele ser abordado e preso por forças imperiais, não pelo crime que cometeu, mas apenas por estar no lugar errado, na hora errada, e não “aparentar” ser nativo do local (quem poderia imaginar algo assim acontecendo nos dias de hoje, não é mesmo?). Cassian é sentenciado à prisão de Narkina 5, e é lá onde seremos apresentados a mais uma das muitas cruéis facetas do Império, já que o local está mais para um campo de trabalhos forçados, com milhares de prisioneiros. Com uma direção e roteiros afiados, o arco atua como denúncia à desumanização do sistema prisional, com guardas dispostos a assassinar um andar inteiro de prisioneiros para que a notícia de que um deles foi transferido ao invés de liberado não se espalhe.
Ainda mais cruel, ao final da temporada vamos descobrir o que eles eram obrigados a construir no local, trabalhando em peças que eventualmente se tornariam parte da Estrela da Morte — a mesma arma que selaria o destino de Cassian ao final de Rogue One.

Enquanto isso, uma ocupação é montada em Ferrix, supervisionada por Dedra em busca de capturar Cassian (sem ter o conhecimento de que nosso protagonista já está confinado em uma instalação imperial esse tempo todo). Ela planeja usar a morte de Maarva como armadilha para atraí-lo de volta, e, em uma cena agonizante, opta por torturar Bix para conseguir mais informações. Ao mesmo tempo, Luthen também está organizando uma tentativa de assassinar Cassian, com medo de que ele revele sua identidade.
Em Narkina 5, os prisioneiros chegam à conclusão de que nunca serão libertados, e decidem que já basta. Junto de Kino Loy (Andy Serkis), supervisor de prisioneiros, Cassian e outros da sua unidade organizam um plano para desativar o chão eletrificado da prisão e iniciar uma rebelião. É durante essa sequência que temos um dos melhores momentos de Andor, com um monólogo brilhante de Serkis reforçando a injustiça de suas sentenças e que ninguém sairia dali sem lutar, enquanto vemos os guardas, antes confiantes e brutais, agora acovardados e se escondendo. Cassian consegue escapar, e vemos um homem profundamente afetado por suas experiências, forçado a confrontar sua postura egoísta e no caminho para se tornar o rebelde que conhecemos.
“Sabemos que eles fritaram cem homens no Nível Dois. Sabemos que eles estão inventando nossas sentenças à medida que avançamos. Sabemos que ninguém de fora sabe o que está acontecendo. E agora sabemos que, quando eles dizem que estamos sendo libertados, estamos sendo transferidos para outra prisão para morrer e isso termina hoje!” – Kino Loy
Opressão é a máscara do medo
As peças foram lançadas, e, em um explosivo final de temporada, os arcos de Cassian, Luthen, Dedra e Syril culminam em Ferrix. É no seu retorno para o planeta que nosso protagonista descobre sobre a morte de Maarva, e, em meio à tensões crescentes entre os moradores de Ferrix e as forças Imperiais, acompanhamos seu funeral. Em um discurso póstumo gravado por ela, Maarva usa suas últimas palavras para a comunidade que amava para apontar como o povo de Ferrix (e da galáxia) esteve adormecido, enquanto as garras do Império cresciam e tomavam cada vez mais liberdades do povo.
“O Império é uma doença que prospera na escuridão, nunca está mais viva do que quando estamos dormindo. É fácil para os mortos dizerem para vocês lutarem, e talvez seja verdade, talvez lutar seja inútil. Talvez seja tarde demais. Mas eu vou dizer isso, se eu pudesse fazer de novo, eu acordaria cedo e estaria lutando contra esses bastardos desde o início! Lutem contra o Império!” – Maarva Andor
É mais um dos monólogos de destaque presentes na série, que nos fazem pensar em todos os paralelos com a vida real, em um dos momentos mais poderosos de toda a franquia. É uma tensão construída devagar, deixando espaço para o público pensar e entender toda a injustiça presente naquele contexto. Mais do que nunca, a arte prova sua importância como crítica e aviso à nossa sociedade. E ali, vemos a mudança nas posturas de Cassian e de Luthen, ambos entendendo a necessidade de uma luta conjunta contra a opressão.
O Império, sempre arrogante e acreditando estar no controle, só percebe a necessidade de interromper a fala quando os ânimos já estão em seu ápice, e é justamente nessa tentativa de censura que o levante do povo de Ferrix acontece. Em um ato de justiça poética, a primeira pedra atirada contra as forças imperiais é justamente o tijolo feito com as cinzas de Maarva. Enquanto o confronto explode, Syril (infelizmente) consegue salvar Dedra, e Cassian resgata Bix. Ele surpreende Luthen em sua nave com um ultimato: ele pode matá-lo, ou deixá-lo se juntar à luta rebelde, encerrando assim a temporada.

Desde o início de seu primeiro episódio, Andor deixa uma coisa muito clara: essa não é uma história tradicional de Star Wars. Mais do que trazer uma narrativa centrada no universo da franquia, a série focou em contar uma história centrada em si mesma, que, por um acaso, se passa no universo de Star Wars — e é justamente isso que fez toda a diferença. Uma história adulta, madura, politizada, que nos apresenta personagens complexos, diversos e cinzentos, tentando navegar uma galáxia caótica enquanto lutam por sua liberdade. O realismo apresentado é o que torna a obra tão potente, permitindo que nos coloquemos no lugar daqueles personagens e nos perguntemos: “O que eu faria se estivesse nessa situação? Será que eu realmente tomaria uma decisão melhor, ou mais correta?”.
Mas o brilhantismo da série não para por aí. O roteiro e as atuações são elevados pelo cuidado demonstrado pela obra como um todo. Sets reais, figurinos e objetos realistas e que se encaixam em cada contexto, a visão das dificuldades e lutas de pessoas comuns vivendo sob um regime totalitário — é possível ver a dedicação de todo o time de produção por trás de cada detalhe, cada design, cada escolha de trilha sonora. Uma trama complexa, contada com nuances e o cuidado que uma história de sua importância merece.
Na forma como vem sendo explorada recentemente, talvez a franquia Star Wars esteja realmente cansada. Exaurida por uma abordagem corporativa e voltada para fan service. Mas Andor é a prova viva de que, quando explorado corretamente, uma certa galáxia muito, muito distante ainda tem um grande número de histórias para contar. A série nos mostra como a menor das ações, quando colocada em conjunto com outras, pode construir algo grandioso e brilhante… capaz até mesmo de derrubar um Império.
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