Democracia é uma palavra muito fácil de ser dita, mas uma coisa bem difícil de ser vivida, porque, antes de mais nada, ela tem que existir dentro de nós. Acho que a primeira coisa que faz com que ela possa ocorrer dentro, é a aceitação do que é diferente, que é a base de toda verdadeira tolerância. Porque todas as discriminações começam a partir de diferenças, porque também da boca pra fora, admitimos que todos são iguais, mas na prática, parece que consideramos que uns são mais iguais que outros.
Fragmento produzido pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) e publicado no boletim ChanacomChana, n. 0, janeiro de 1981, p. 3
Nas décadas de 1970 e 1980, no contexto da ditadura civil-militar brasileira, coexistiam entre si a repressão e a expressão ínfima das relações pessoais, políticas e comerciais da população LGBTQIAPN+.
A homofobia na sociedade brasileira sempre existiu, inclusive com o apoio de órgãos do estado, mas durante o regime de 1964, o discurso da homossexualidade como mal que ameaçava a moral e os bons costumes da família tradicional foi institucionalizado. Portanto, é impossível discutir a visibilidade lésbica no Brasil e a importância dela sem observar o contexto da ditadura civil-militar.
Antes, as representações LGBTQIAPN+ nacionais eram quase inexistentes, e a partir desse período, a mídia alternativa se centralizou em pequenos canais de informação que logo ganharam influência: os jornais Lampião da Esquina (1978) e ChanacomChana (1981).
Nesses jornais – o primeiro voltado a diferentes subgrupos da sigla e o segundo voltado para o público lésbico –, a abordagem dos temas importantes às pessoas homossexuais estavam muito ligados ao momento de luta contra os grupos de esquerda, que não acreditavam na luta senão a do proletariado, a “luta maior”. A luta contra os direitos de pessoas homossexuais, portanto, na visão dos grupos de esquerda, não eram prioritários, eram considerados “lutas menores”. As equipes que coordenavam esses jornais, contudo, subverteram esse pretexto hierárquico. Eles acreditavam em uma luta não apenas do proletariado, mas de todas as lutas juntas, simultaneamente.
O homossexualismo ainda é um assunto obscuro, digo maldito, para a maioria das pessoas. Ele encontra-se situado no cruzamento do pecado com o preconceito.
Talvez por isto, poucos artistas se predisponham a falar sobre suas preferências sexuais. Equivaleria a colocarem-se sob o julgo inflacionário da opinião pública. Este parêntese é um desabafo pela nossa sociedade que possui uma absurda e arraigada tradição moralista, que propicia um ‘certo apoio’ às ações brutais e arbitrárias da polícia […]
Fragmento produzido pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) e publicado no boletim ChanacomChana, n. 0, janeiro de 1981, p. 1
Em tempos de hostilidade geral, o simples fato de ser e estar exposta como mulher que ama outra mulher foi e continua sendo uma atitude política. Além da militância do período, algumas figuras da Música Popular Brasileira (MPB) estiveram bravamente fora do armário, como pioneiras às pautas correntes do movimento e como importantes representações na visibilidade lésbica.
No Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, celebrado em 29 de agosto, então, essas memórias difíceis e essas representações felizes de desobediência à época devem ser memoradas.
Dora Lopes
Dora Lopes foi pioneira da MPB nos anos 40, sendo uma das primeiras compositoras a tratar da homoafetividade feminina. Lésbica assumida, umbandista e dona de boate, ela se destacou por explorar temas da boemia em suas letras, ainda que de modo sutil – como em Pintura manchada (1965).
Leci Brandão
Leci Brandão, em plena ditadura, unia música à vida política. A cantora-compositora foi a primeira mulher negra a integrar a ala de composição da Mangueiras e uma das primeiras a falar abertamente sobre a sua homossexualidade – como nos álbuns Questão De Gosto (1976) e Coisas Do Meu Pessoal (1977).
Eleita 3 vezes deputada estadual em São Paulo, Leci Brandão lutou pela igualdade racial, pelo respeito às religiões de matriz africana, pelo combate às opressões de gênero e pela conquista de direitos LGBTQIAPN+.
Angela Ro Ro
Naquele período, Angela Ro Ro foi a cantora-compositora que expôs mais diretamente a sua sexualidade, foi “a que tudo sentiu, disse e fez” – trecho de Não Há Cabeça (1979). A artista sofreu na pele as violências submetidas às lésbicas no período ditatorial.
Essas cantoras-compositoras são algumas de muitas que abriram espaço para que outras artistas brasileiras também assumissem publicamente as suas identidades e orientação sexual, como Zélia Duncan, Mart’nália, Marina Lima, Ana Carolina, Maria Gadú, Sandra de Sá e muitas outras.
Hoje, tudo é muito mais fácil e muito se deve à visibilidade que esse conjunto de lésbicas, sapatas, fanchas e caminhoneiras citado, que deixam um legado, além do musical, para as gerações futuras, quanto às lutas pelo direito de ser, de desejar e de amar, ainda que a sociedade teimasse em negar na época. Sem memória não há visibilidade, não há orgulho. É preciso lembrar do passado.
Deixe um comentário