Apesar de ter alcançado sucesso crítico e comercial com o remake de Silent Hill 2 no ano passado, a verdadeira prova de fogo da Konami seria seu próximo título: anunciado em 2022 junto com outras adições à franquia, Silent Hill ƒ foi logo marcado pela expectativa de uma nova história no mythos macabro da série, dessa vez de responsabilidade do estúdio NeoBards Entertainment (primeiro estúdio japonês à trabalhar num jogo da franquia após a dissolução do “Team Silent” em 2007). Ambientado longe da cidade americana que dá o nome à franquia, ƒ se passa no Japão dos anos 60, onde uma jovem precisa escapar de um nevoeiro assassino enquanto batalha monstros que espelham seus piores pesadelos.
O título misterioso e a mudança de cenário logo chamaram a atenção dos fãs da franquia, que vinha sendo maltratada por sua publisher na última década, assim como várias de suas outras propriedades. Quando a revitalização do segundo jogo foi bem recebida tanto por eles quanto pelo público em geral, a dúvida surgiu: será que estaríamos observando a ressurreição de um dos nomes mais influentes do terror digital? Finalmente disponível no final de setembro, Silent Hill ƒ dá sua resposta, nos lembrando que o terror nunca morre de verdade.

Shimizu Hinako (Konatsu Kato) é uma jovem colegial da pequena cidade rural de Ebisugaoka, situada num desfiladeiro nebuloso. De repente, ela se vê sozinha, rodeada por monstros e flores carnosas que parecem surgir da névoa espessa. Armada apenas com o que quer que possa empunhar, ela deve atravessar o inferno surrealista para desvendar o porquê daquilo estar acontecendo.
Silent Hill sempre foi uma franquia difícil de se qualificar. Apesar de sua influência duradoura no gênero do survival horror, seus aspectos mais marcantes sempre foram suas ambiguidades e como a narrativa se aproxima mais de uma experiência interativa, feita não necessariamente com o objetivo de fazer sentido, mas de suscitar emoções no jogador através de imagens e insinuações. A superfície não está lá para esconder o seu terror, mas indagá-lo, te fornecendo a oportunidade de formular as perguntas para se obter uma resposta.

É sim tentador se referir à história de Silent Hill ƒ como um quebra-cabeças, mas isso implicaria dizer que há uma solução para ela quando esse simplesmente não é o caso. Ao longo da trama o título explora temas como identidade de gênero na sociedade patriarcal japonesa do pós-guerra e violência doméstica e abuso familiar como forma de manutenção da hierarquia de poder, mas até mesmo essas descrições falham em abarcar a profundidade de emoções de sua personagem principal e a simpatia gerada por sua dor.
Escrito pelo roteirista Ryukishi07, Silent Hill ƒ tem uma das tramas mais emocionalmente complexas do terror digital moderno, tomando proveito completo de sua qualidade enquanto videogame e praticamente implorando para que você o jogue de novo assim que terminar, dando ainda mais fôlego à sua forte narrativa. Assim como outros títulos da série, ƒ possui múltiplos finais, determinados por ações específicas tomadas ao longo do jogo, não demarcadas por binários de bom/ruim, mas por interpretações distintas de sua narrativa.
Herdeira do legado de Heather em Silent Hill 3, Hinako é revelada em camadas junto com o resto de sua narrativa, começando como uma colegial relativamente normal, lidando com os surtos de um pai violento e uma mãe complacente. Ela sente profundamente a falta de sua irmã, Junko (Nanako Mori), mas resguarda suas emoções até mesmo de seu melhor amigo, Shu (Natsuki Osaki). Ela se encontra com ele e outras duas colegas de classe, a brincalhona Sakuko (Eri Gôda) e a tímida, mas rancorosa Rinko (Yuuka Iijima) na frente do armazém geral da cidade quando uma mazela escarlate começa a se espalhar e um monstro disforme começa a persegui-los pela névoa.

Ainda como em outros títulos, a história se divide em dois cenários: um em Ebisugaoka, onde Hinako tenta ajudar seus colegas à sobreviver e um “Outro Mundo”, inspirado por figuras do folclore nipônico, onde ela é guiada por um homem misterioso usando uma máscara de raposa (Kazuaki Yasue). Lá é onde algumas das cenas mais aterradoras do título acontecem, acompanhando a metamorfose macabra de sua protagonista, transformando diversas vezes a experiência do jogo com mecânicas inéditas e visuais incríveis.
A narrativa de Silent Hill ƒ floresce junto com Hinako, ficando cada vez mais misteriosa e macabra quanto mais sua protagonista é exposta às realizações escondidas no inferno astral em que se encontra. O jogo respeita a tradição da série e tem um combate genuinamente tenebroso, exigindo timing preciso para revidar os ataques dos monstros sem ser interrompido e manejamento cuidadoso de um inventário limitado. E, no entanto, a parte mais desafiadora continua sendo a resolução de puzzles elaborados pelo cenário, cada qual revelando ainda mais dos personagens da trama. Um dos mais memoráveis, envolvendo uma plantação de arroz, indiretas escolares e espantalhos homicidas mascarados, acontece na primeira metade do jogo e oferece um gosto da malícia que está por vir.
O design e as mecânicas dos inimigos também merecem destaque, já que também oferecem insight sobre a trama e os medos de sua protagonista, que rejeita as expectativas da sociedade sobre seu corpo e é rotineiramente atacada por manequins mascarados, monstros maternos cobertos de pústulas e seres rastejantes sem rosto que anseiam por agarrá-la e possuí-la. Cada um mais marcante e evocativo do que o outro, é uma sinfonia de terror elevada por sua maestria da forma e da substância.

Mais uma produção da Konami trabalhando na penosa Unreal Engine 5, Silent Hill ƒ é talvez o que melhor consegue equilibrar o peso do motor gráfico com uma experiência visual lisa, apesar de vários bugs atrapalharem de vez em quando. As transições dinâmicas entre cenas e gameplay são, junto com as atuações impecáveis de seu elenco, um dos pontos altos de sua apresentação.
A trilha sonora de Akira Yamaoka e Kensuke Inage e o resto da ambientação sonora do jogo complementam seus visuais e muitas vezes informam o teor de vários dos momentos mais sinistros de ƒ, misturando temas clássicos da franquia com novas inspirações, criando composições icônicas e estranhamente belas. Se um dos temas presentes na sinopse do jogo é “encontrar a beleza oculta no terror”, nada exemplifica mais isso do que as novas faixas de Yamaoka e Inage.
Meu primeiro pensamento, após terminar Silent Hill ƒ pela primeira vez, foi de que eu não achava que jogos como este ainda eram feitos. Numa indústria cada vez mais preocupada com fidelidade gráfica e estéticas realistas, uma trama tão surreal e ousada num título AAA é como um oásis no deserto, não por desviar completamente desse estilo, mas por utilizá-lo para ressaltar seus elementos mais extraordinários, ao mesmo tempo em que revela os elementos mais mundanos e profundos de seu terror.
Há muito para se escrever sobre ƒ, talvez até demais. É uma fábula brutal e violenta sobre um conflito interno que ameaça deixar sua protagonista completamente destroçada. Mas também é uma história tão simpática com ela e suas decisões que o horror contido em sua trama consegue ser, de alguma forma, reconfortante.
Um balé de survival horror performado com harmonia e precisão, o jogo balanceia todos os elementos da fórmula volátil da franquia e a reforça com sua própria concepção do que Silent Hill pode ser. Na medida em que o remake de Silent Hill 2 foi um passo para trás para recuperar o equilíbrio, Silent Hill ƒ é um salto para o futuro que reitera a importância do gênero de terror e sua capacidade de ser palco para as histórias que temos medo de contar. Essas são, afinal de contas, as mais importantes.
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