Os caminhos e Atalhos da banda que une música e literatura

Confira entrevista exclusiva com banda de Birigui, no interior de São Paulo, que se apresentará no The New Colussus Festival, em Nova Iorque

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Com mais de uma década de estrada, Atalhos transforma referências literárias em música

Entre referências a grandes autores e temáticas da literatura nacional e internacional, a banda paulista Atalhos vem conquistando seu espaço no cenário musical com um estilo alternativo próprio, ao experimentar despretensiosamente as sonoridades do folk, rock, indie e dreampop.

Desde o álbum de estreia, Em Busca do Tempo Perdido (2012), a dupla formada pelo vocalista e compositor Gabriel Soares e pelo guitarrista Conrado Passarelli mescla passagens literárias com a efervescência de temas atuais e cotidianos, que vão do amor à política, do abstrato ao relato mais pessoal.

No primeiro projeto autoral, a obra-prima do escritor francês Marcel Proust, dividida em sete volumes, inspira a faixa-título do disco, combinando-se com os pensamentos de Jean-Paul Sartre e com paisagens urbanas, especialmente da região central de São Paulo.

Em 2022, com o lançamento do aclamado A Tentação do Fracasso, o grupo atingiu sua maturidade artística, assumindo o dreampop como característica e apresentando letras mais robustas — ora cantadas em português, ora em espanhol — e melodias perfeitamente alinhadas à sonoridade das guitarras elétricas. O álbum apresenta uma atmosfera sem fronteiras, dialogando com a musicalidade latino-americana. Não à toa, foi produzido por Ives Sepúlveda, da também fascinante banda de rock psicodélico The Holydrug Couple, de Santiago, e rendeu turnês pelo Brasil, Argentina, Estados Unidos e Europa.

Agora, prestes a lançar seu quinto disco — ainda sem título, mas com influências da obra de Simone de Beauvoir —, Atalhos conversa com o Tesoura Com Ponta antes de subir ao palco do The New Colossus Festival, em março, em Nova Iorque.

A dupla fará sua estreia em Nova Iorque, se apresentando em um festival que reúne músicos de diversas partes do mundo (Foto: Felipe Martins)

Matheus Santos: O novo álbum ainda não tem título confirmado, mas já sabemos que traz influências da obra de Simone de Beauvoir. Como a filosofia e a literatura da autora se conectam com as músicas do disco?

Gabriel Soares: Nós sempre fomos muito inspirados pela filosofia existencialista da metade do século XX. Abrimos o nosso primeiro disco com uma faixa que se chama Mathieu 4 Ever, e foi uma brincadeira que fizemos com o nome do protagonista da trilogia A Idade da Razão, do Sartre.

O novo álbum, que vamos lançar agora em 2025, é talvez um dos mais pessoais, bastante autobiográfico, e sinto que devo muito aos livros da Simone, em que ela narra a sua própria vida, especialmente A Força das Coisas. Como ela escreve em seu livro: “É impossível escrever sobre a própria vida sem iluminar a vida dos outros.”

Acho que, apesar de as músicas do novo álbum serem extremamente pessoais e autorreferentes, elas com certeza vão falar diretamente aos ouvintes, que também podem ver iluminadas suas próprias histórias de amor, suas relações perdidas e, ainda assim, encontrar potência e força nessas “coisas” que resistem ao efeito do tempo na memória.

Matheus Santos: O que os fãs podem esperar da sonoridade desse novo trabalho? Há alguma experimentação diferente em relação aos discos anteriores?

Gabriel Soares: Sempre há experimentação e um desejo de sair da zona de conforto, de criar uma paisagem sonora nova. Mas, nesse caso, o desafio foi também tentar resgatar alguns elementos e influências de quando começamos a tocar. Então, acho que algumas faixas terão uma mistura interessante de dreampop — gênero que marcou bastante o som da Atalhos nos últimos anos — com elementos que remetem às nossas influências do britpop e do pop rock dos anos 1990.

Matheus Santos: Entre os singles disponíveis até o momento, há alguma faixa favorita desse novo disco? Alguma que represente especialmente esta fase atual da banda?

Gabriel Soares: A minha favorita é a que leva o nome do álbum e que será lançada apenas junto com o disco. Mas acho que Ayer Morí representa bem essa nova fase da banda, pois une o folk com guitarras distorcidas e traz uma melancolia que, ao longo da canção, se transforma em uma energia transformadora.

Matheus Santos: No último álbum, vocês exploraram bastante a sonoridade latina e incorporaram o espanhol às letras. Essa fusão continua no próximo lançamento?

Gabriel Soares: Sim, essa expansão além das fronteiras brasileiras continuará presente e ficou marcada pelo single totalmente em espanhol que lançamos em 2023, Más Lejos. Nesse novo álbum, teremos algumas faixas com letras que incorporam o português e o espanhol, mas a maioria do disco será em português mesmo.

Matheus Santos: Como funciona o processo de composição de vocês? As referências literárias vêm antes da melodia ou surgem naturalmente durante a criação?

Gabriel Soares: Estou lendo quase todo o tempo, então, sempre que paro para compor, estou sendo influenciado indiretamente por algo da literatura. Mas o que eu faço, geralmente, é entender se a letra remete a alguma coisa que eu li e, de vez em quando, faço uma homenagem colocando o nome de uma música ou de uma personagem no título e tal.

Tento fazer isso da maneira mais despretensiosa possível, para não deixar nenhum tipo de mácula intelectualóide nas músicas… Para ser sincero, tento escrever as letras da maneira mais direta possível.

Por algum tempo, acho que esse lance de a banda ser sempre lembrada como uma banda que faz referências literárias pode ter criado uma falsa impressão de que as pessoas precisam ler os livros para entender nossas letras, quando, na verdade, são apenas brincadeiras que fazemos com livros de que gostamos muito.

Gosto de escrever letras diretas e simples, obviamente sem cair naquela coisa pobre que rima tudo com terminações de verbos em “ar” ou “er” (risos), mas valorizo muito as letras diretas, que falam imediatamente ao ouvinte.

Não são apenas as letras que se comunicam diretamente com o ouvinte — os clipes, apesar da simplicidade, também se destacam pela elegância e originalidade (Foto: Bruno Alfano)

Matheus Santos: Como o público reage a essa fusão entre literatura e música? Já receberam histórias de ouvintes que começaram a ler certos autores por causa das músicas da banda?

Gabriel Soares: Sim! E essa é a parte mais legal de fazer esse link com a literatura nas nossas músicas. Gosto muito da ideia de que a música não precisa se encerrar nela mesma e que pode guardar uma porta para o ouvinte seguir a experiência com um filme, um livro…  

A história mais legal, eu acho, aconteceu em um show em Curitiba, quando uma fã veio falar com a gente e contar que estudava teoria literária e que tinha recomendado nossa música para sua professora. O mais incrível é que ela realmente conhecia todas as faixas (inclusive as mais antigas, que nunca tocamos ao vivo) que faziam referência a livros.

Gosto muito da ideia de que a música não precisa se encerrar nela mesma e que pode guardar uma porta para o ouvinte seguir a experiência com um filme, um livro…

Matheus Santos: O Tesoura Com Ponta possui um quadro chamado Corte Seco, com resenhas e indicações de livros. Qual livro recomendariam para os nossos leitores e por quê?

Gabriel Soares: Para não ficar só em A Força das Coisas, da Simone de Beauvoir, vou indicar um romance dela que também é meio autobiográfico, mas com personagens com outros nomes e tal. É um dos meus livros favoritos e se chama Os Mandarins.

Foi o livro que me fez realmente conhecer Simone de Beauvoir… Antes, eu tinha uma ideia um pouco distorcida sobre ela. O lance da famosa “relação aberta” com Sartre me dava a impressão de uma pessoa meio fria, mas, nesse livro, conheci a verdadeira Simone: uma mulher totalmente apaixonante e apaixonada, intensa, entusiasmadíssima com a vida dos outros e com a própria vida.

Matheus Santos: Vocês estão prestes a tocar em festivais nos Estados Unidos. Como está a expectativa para esses shows? Mesmo tendo tocado em outros países, o que eles têm de diferente?

Gabriel Soares: Vai ser a segunda vez que tocamos nos EUA e a primeira em Nova Iorque. Na primeira vez, fomos muito bem recebidos, de verdade, e, mesmo que a maioria dos gringos não entenda o que estamos cantando, rola uma interação muito interessante. Acho que isso acontece porque grande parte das nossas influências vem da música americana, como Wilco, Bruce Springsteen, Tom Petty, The War on Drugs, etc.

Matheus Santos: A América Latina tem sido uma influência constante na música de vocês. Há planos para uma turnê mais extensa pela região?

Gabriel Soares: Sim, queremos voltar a tocar na Argentina e no Chile, e temos planos concretos de estrear no Paraguai e no Uruguai agora em 2025.

Atalhos acumula colaborações com diversos artistas latinos, incluindo os argentinos El Príncipe Idiota e Delfina Campos

Matheus Santos: Atalhos já tem mais de uma década de estrada. Se pudessem voltar no tempo e dar um conselho para vocês no início da banda, qual seria?

Gabriel Soares: Acho que, ao longo do tempo, fomos um pouco injustos com algumas coisas que escutávamos e compúnhamos no início da carreira, como se a gente tivesse vergonha do início lá no interior, sabe? Então, acho que o fato de resgatar algumas influências do nosso começo nesse novo álbum é uma forma de fazer as pazes com nosso passado (risos).

Ondas de Calor, segundo single do próximo álbum, traz a banda de volta às suas raízes roqueiras, combinando influências do shoegaze, do noisy e do característico dreampop

Matheus Santos: O mercado musical mudou muito nos últimos anos, principalmente com o streaming e as redes sociais. Como vocês enxergam esse novo cenário para bandas independentes?

Gabriel Soares: Sempre fomos entusiastas das novas tecnologias. Ainda me lembro da emoção que foi subir uma das nossas músicas no MySpace pela primeira vez, mas, por outro lado, é evidente que hoje em dia as redes sociais estão simplesmente destruindo a música… Essa dinâmica de pressão para lançar música todo mês, de fazer colaborações nada a ver só para aumentar o engajamento, de disputar loucamente a atenção de fãs no feed das redes sociais com “conteúdos” cada vez mais estúpidos definitivamente não é algo que nos entusiasma muito mais.

Matheus Santos: Como era o cenário musical em Birigui no período em que vocês começaram? Existia uma cena independente ou vocês precisaram criar seu próprio espaço?

Gabriel Soares: Nós tivemos a grande sorte do mundo de existir uma rádio rock pirata em Birigui. Lembro até hoje, se chamava Rádio Artes, e realmente só tocava rock. E o pessoal da rádio fazia festivais e chamava as bandas locais para tocar. Lembro de uma vez que eles levaram o IRA! para tocar no Ginásio de Esportes da cidade, mas meus pais não deixaram eu ir porque eu só tinha 13 anos. Quando fiz 15 anos, eu já tocava com Atalhos nesses festivais que a rádio organizava em chácaras próximas da cidade. E no meio do setlist de covers, que iam desde Alice in Chains até Plebe Rude, a gente começou a incluir algumas “músicas próprias”, como eram chamadas na época. E sim, com o tempo, também tivemos que inventar nossas próprias festas para poder tocar e juntar uma galera, e acho que esse espírito “do it yourself” é uma das melhores coisas que carregamos até hoje.

Em 2013, Atalhos se apresentou em sua cidade natal ao lado de Marcelo Bonfá, baterista do Legião Urbana. Bonfá, além de participar do show, foi responsável pela ilustração da capa do primeiro disco da banda (Foto: Reprodução)

Matheus Santos: Se Atalhos fosse uma estrada ou um caminho literal, como descreveriam essa jornada até aqui?

Gabriel Soares: Parece até piada, mas, durante toda a nossa carreira, tudo o que não encontramos pelo caminho foi justamente um “atalho”. Ainda estamos ralando duramente para encontrar nosso espaço, para divulgar nossa música, para encontrar lugares e palcos que nos recebam. Ou seja, seguimos nesse caminho longo e difícil, por estradas vicinais (risos).

Parece até piada, mas, durante toda a nossa carreira, tudo o que não encontramos pelo caminho foi justamente um “atalho”.

Matheus Santos: Qual foi o maior desafio que enfrentaram durante a produção de algum álbum e como conseguiram superá-lo?

Gabriel Soares: Acho que o desafio foi ter conseguido gravar o primeiro. Depois dele, o desafio foi sempre tentar encontrar algo que nos tirasse da zona de conforto do anterior e nos abrisse um caminho novo, e assim por diante.

Matheus Santos: O que inspirou a escolha do nome Atalhos e como ele reflete a identidade musical de vocês?

Gabriel Soares: O nome é uma coisa besta, mas que eu tenho muito carinho pela história também. Era o nome da banda do pai do Serginho, meu amigo que estudava no colégio comigo e que topou formar uma banda comigo. O pai dele teve uma banda na juventude que fazia cover de Mutantes, entre outras coisas, e se chamava Atalhos do Som. Eu gostei do “atalhos”, me remetia a alguma coisa tipo The Doors, (risos), então foi isso.

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