“Feliz aniversário, Haymitch!”. É assim que Suzanne Collins nos joga de volta à brutalidade cerimonial de Panem. A frase que inaugura Amanhecer na Colheita parece, à primeira vista, um gesto de celebração, mas logo revela sua ironia perversa: o dia em que Haymitch completa mais um ano de vida é também o dia da Colheita, quando vidas são sorteadas para a morte. Com isso, Collins, além de introduzir sua nova narrativa, escancara um sistema cruel que faz de datas mais íntimas se tornarem lembranças traumáticas. Não há festa, há sorteio. Não há parabéns, há sentença.
Neste prelúdio da saga Jogos Vorazes, a autora recorre à juventude de Haymitch Abernathy, o mentor sarcástico do Distrito 12 que conhecemos nos livros anteriores, para revelar como o jovem foi moldado por um regime que converte sobrevivência em espetáculo e dor em moeda política. Aqui, não há ingenuidade. Há um mundo já corrompido, onde o “amanhecer” não é sinônimo de esperança, mas de continuidade do ciclo.
Voltar a este mundo, anos depois da leitura da trilogia original, é como reencontrar uma parte esquecida de si. Quando li Jogos Vorazes pela primeira vez, era adolescente, no auge da era das distopias. Os olhos vibravam com a rebeldia de Katniss, com o desespero das arenas, com a urgência do agora e, claro, com a minha paixão incontrolável por Peeta Mellark. Hoje, adulta, é impossível não sentir o peso acumulado da memória: a saga segue sendo eletrizante. O livro, lançado em março de 2025 pela Editora Rocco e traduzido por Regiane Winarki, é um presente (amargo, como todo bom presente de Suzanne Collins) para quem cresceu junto com essa história.

Não vou negar que, na época do lançamento, eu não estava animada para conhecer a história do Segundo Massacre Quaternário. E isso é culpa, exclusivamente, de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, de 2020. Snow, embora seja um vilão bem construído, carrega desde os 18 anos a arrogância de quem já se acha no topo (como diria minha mãe, o clássico “pobre metido a rico”). Além disso, a leitura me pareceu arrastada, por vezes excessivamente lenta. Confesso que desanimei e abandonei o livro antes da metade. Dou o devido crédito à adaptação cinematográfica de 2023, dirigida por Francis Lawrence (o mesmo responsável pelos filmes da trilogia original), que soube dar ritmo à história. Ainda assim, o livro nunca me fisgou. Mas com Amanhecer na Colheita, a história era outra.
A 50ª edição dos Jogos Vorazes é cruel até para os padrões de Panem. Como reviravolta, o número de tributos foi dobrado (dois homens e duas mulheres por distrito), um gesto simbólico para lembrar que, a cada baixa da Capital, dois rebeldes pagariam com a vida. A arena, descrita como “o lugar mais deslumbrante que se possa imaginar”, carrega uma paisagem quase onírica, onde tudo era letal. Nada ali era seguro. A comida que crescia era venenosa, a água da corrente causava delírios, até mesmo o perfume das flores era mortal. As únicas fontes seguras de sustento vinham da própria Cornucópia e da chuva, disfarçando o paraíso natural em um campo de execução meticulosamente projetado. Para Haymitch, aquele cenário de beleza e morte marca o ponto em que ele deixa de apenas sobreviver e passa a compreender, com dor, que o verdadeiro jogo é manipulado muito antes da arena começar.
O que torna Amanhecer na Colheita tão potente é a recusa em romantizar qualquer passo da trajetória de Haymitch. Não há espaço para heroísmo fácil ou para redenção imediata. O que lemos é o registro de alguém sendo partido, lentamente, por um sistema que exige sacrifício até mesmo para quem vence. Collins dá tempo para que as consequências se acumulem e se tornem visíveis. O sofrimento não é apenas físico, mas sobretudo moral, como uma ferida que não cicatriza com o fim dos Jogos.

A narrativa é entremeada por brechas de humanidade. A relação entre Haymitch e sua família, com sua namorada, Lenore Dove, o vínculo inesperado com outros tributos, a percepção crescente de que viver com dignidade exige muito mais do que apenas sobreviver. Essas pausas delicadas (e sempre breves) não aliviam o peso da trama, mas ajudam a compreender quem ele se tornará no futuro. Em vez de nos entregar um passado que justifica tudo, a autora opta por mostrar um presente que corrói, camada por camada, qualquer certeza que o personagem ainda nutria.
Talvez o maior mérito do livro esteja em nos lembrar que a brutalidade dos Jogos não é uma aberração pontual, mas um mecanismo sofisticado de controle. Os rostos das vítimas mudam, os cenários também, mas a lógica permanece. Para quem leu a trilogia original, essa constância é dolorosa. Sabemos como termina, e mesmo assim, cada virada ainda dói. (Sim Ampert e Maysilee, estou falando de vocês).
No fim, Amanhecer na Colheita não pede que o leitor goste mais de Haymitch. Pede algo mais difícil, que se reconheça nele as marcas de um sistema que não perdoa nem os que vencem. Ao encarar de frente a juventude do mentor que virou alívio cínico nos livros anteriores, Suzanne Collins entrega uma obra menos espetaculosa e mais íntima, mas, por isso mesmo, ainda mais incisiva.
É um retorno corajoso a Panem. E como sempre, por mais que saibamos o que nos espera, Suzanne Collins ainda consegue nos surpreender. Não com reviravoltas, mas com a brutalidade de quem nunca prometeu finais felizes. Apenas verdades difíceis. Haymitch, te espero em 2026 com a adaptação de Amanhecer na Colheita nos cinemas.
Nota da autora: a Suzanne com certeza viu os edits de Tom Blyth no TikTok e decidiu reforçar quem realmente é o presidente Snow.
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