Dentro de um cômodo, em I Saw The TV Glow (2024) existe uma luz que brilha. Por trás dos olhos de uma dupla de adolescentes profundamente sós, a direção de Jane Schoenbrun captura a nostalgia da televisão infanto-juvenil dos anos 1990, que dá sequência à uma trilogia que atravessa telas. Denominada como “Screen Trilogy”, o projeto também é constituído pelos longas-metragens We’re All Going to the World’s Fair (2021) e Teenage Sex and Death at Camp Miasma (sem previsão de lançamento), que ecoam ruídos estáticos de despertencimento.
Ambientado nos subúrbios norte-americanos, I Saw the TV Glow decorre em um período de transformações tecnológicas, sociais e culturais na produção do entretenimento, centralizado em Owen (interpretado por Ian Foreman como criança e por Justice Smith como adulto) e Maddy (Brigette Lundy-Paine), jovens que compartilham a paixão por uma série chamada “The Pink Opaque”.
A internet ainda não era a plataforma onipresente que hoje é. Aqueles que exploravam o ciberespaço limitavam-se a fóruns que posteriormente moldariam a relação entre TV e fandom. Antes, ser fã demandava um esforço físico de acompanhar semanalmente uma série.
Era preciso controlar programações, ler recapitulações de episódios perdidos e estar presente, frente à TV, no momento exato em que o programa estivesse em transmissão. Não assistir a um capítulo significava ficar sem parte da história, à mercê de uma possível reprodução ou, para as pessoas de sorte que encontraram na época a revelação de uma outra que também amava as coisas que amava, da gravação em VHS de alguém.
Fragmentos da memória apresentam as protagonistas, com lapsos da narração em primeira pessoa de Owen, um menino quieto protegido por uma mãe amorosa e por um pai rígido. Quando pequeno, assiste com curiosidade o anúncio de “The Pink Opaque”, transmitida às 10h30 das noites de sábado, minutos após o seu horário de dormir. Mas é durante a eleição presidencial de 1996, enquanto acompanhava a mãe, que Owen avista uma menina mais velha lendo o guia de episódios da série que deseja tão agudamente ver. Ela é Maddy, pré-adolescente desajustada, autoproclamada lésbica e grande fã do programa.
Maddy explica a série para Owen: é sobre Isabel e Tara, duas garotas que compartilham uma ligação psíquica, uma força que lhes permite lutar contra os monstros da semana, além do antagonista principal das temporadas, o grande vilão Mr. Melancholy – tropos das produções televisivas dos anos noventistas, chamados de “Monster of the Week” e “Big Bad”, respectivamente.
“The Pink Opaque” é uma ode explícita à Buffy, A Caça-Vampiros (1997-2003), programa em que Jane Schoenbrun é declaradamente grande fã e disse em entrevista que desejava refletir no filme o queerness comumente inerente às séries da época, que “valem ser lembradas porque foi onde uma geração de pessoas LGBTQIAPN+ se reconheceu pela primeira vez”.
De nomes das personagens, à fonte da abertura, à aparição da atriz que protagonizou uma das mais queridas personagens de Buffy, A Caça Vampiros, não é justo falar de I Saw The TV Glow sem citar a importância do seriado adolescente na relação da experiência queer com a mídia. Revestidos pelo filtro da magia, os episódios evocavam temas adjacentes ao processo de amadurecimento de pessoas LGBTQIAPN+. A metamorfose do corpo, a marginalização das criaturas, a vida secreta e solitária de uma caça-vampiros, a morte inevitável e o amor àqueles que escolhemos como família; representados nas aventuras humanamente animalescas do grupo sobre a boca do inferno.
Assim como Buffy e seus amigos transformam-se em símbolos de emancipação para uma geração de adolescentes que assistiram na TV a possibilidade de ser, Isabel e Tara eram equivalentes para Owen e Maddy. No instante em que, escondido dos pais, Owen testemunhou “The Pink Opaque” pela primeira vez na casa de Maddy, um vínculo permanente é formado entre ambos. Naquele instante, algo é convertido. Espaço-tempo, ficção-realidade, corpo-espírito começam a embaralhar-se.
A TV simboliza um portal para um espaço alternativo. É a válvula de escape utilizada para consolidar as suas solidões impenetráveis, unidas pela obsessão sobre duas garotas que salvam o mundo lilás de criaturas horrendas todas as semanas. Owen e Maddy pertencem lá. Esse estado anímico origina uma ânsia doída de retorno a um passado saudoso que nunca existiu, onde a satisfação é apenas atingida pela fantasia.
Eu gritei o mais alto que podia. Eu pedi perdão por tudo. E eu implorei para que Deus enviasse alguém que me salvasse. Eu tentei e tentei cavar, no esforço para sair de lá […] E então, após não sei quanto tempo, eu senti o meu corpo saindo de mim. E foi como assistir a mim através da TV, do outro lado do cômodo. E eu me distanciava mais e mais da tela, até que a tela ficou tão pequena que eu não conseguia mais me ver. […] E era eu. Era finalmente eu.
Mas com o passar dos anos, dos meses, das semanas, dos dias, das horas, dos minutos e dos segundos, assistir não era mais suficiente para Maddy. Diante da solidão imensa que encobria o coração da adolescente, sair daquela cidade era urgente. O tempo cada vez mais arrastava-se, o ar gradualmente subtraía-se.
Junto da partida de Maddy, a série foi cancelada. Owen permanece na mesma cidade, e cresce. Como uma pessoa produtiva que intenciona ser, ele repete que nada daquilo é real. Existe o reconhecimento doloroso de que as coisas que um dia amamos, agora, sob a luz cálida da idade, é estranho a nós. O mal-estar adolescente, o vazio angustiante nunca plenamente curado, altera-se em uma prisão da vida adulta. A televisão, no final, não é apenas um artifício de salvação; também é o aperto para encontrar significado neste mundo que, muitas vezes, parece não ter nenhum. Mas ainda há tempo.
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