I Saw the TV Glow: como me enxergo através da tela

A direção de Jane Schoenbrun dá origem a um clássico do cinema queer, onde a televisão é fonte de autodescoberta

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Foto do filme I Saw the TV Glow. É noite e não é possível identificar características das duas pessoas na foto. Uma está de regata e saia rosa, e a outra está de casaco e calça preta. O céu é azul escuro e estrelado. A lua possui um rosto e é amarelada. As pessoas estão em um campo de futebol, com gramado verde. Ambas estão de costas, lado a lado, olhando para a lua.

Dentro de um cômodo, em I Saw The TV Glow (2024) existe uma luz que brilha. Por trás dos olhos de uma dupla de adolescentes profundamente sós, a direção de Jane Schoenbrun captura a nostalgia da televisão infanto-juvenil dos anos 1990, que dá sequência à uma trilogia que atravessa telas. Denominada como “Screen Trilogy”, o projeto também é constituído pelos longas-metragens We’re All Going to the World’s Fair (2021) e Teenage Sex and Death at Camp Miasma (sem previsão de lançamento), que ecoam ruídos estáticos de despertencimento.

Ambientado nos subúrbios norte-americanos, I Saw the TV Glow decorre em um período de transformações tecnológicas, sociais e culturais na produção do entretenimento, centralizado em Owen (interpretado por Ian Foreman como criança e por Justice Smith como adulto) e Maddy (Brigette Lundy-Paine), jovens que compartilham a paixão por uma série chamada “The Pink Opaque”.

Foto do filme I Saw the TV Glow. Nela, estão duas pessoas: um menino negro, magro e de cabelo curto preto; e uma menina branca, magra e de cabelo médio ruivo. Elas estão sentadas olhando para a frente, em um sofá listrado, dentro de um cômodo escuro, iluminados por uma luz lilás.
Exibido nos festivais de Sundance, Berlim e San Sebastián, além do SXSW, o filme integrou a seleção da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (Foto: A24)

A internet ainda não era a plataforma onipresente que hoje é. Aqueles que exploravam o ciberespaço limitavam-se a fóruns que posteriormente moldariam a relação entre TV e fandom. Antes, ser fã demandava um esforço físico de acompanhar semanalmente uma série.

Era preciso controlar programações, ler recapitulações de episódios perdidos e estar presente, frente à TV, no momento exato em que o programa estivesse em transmissão. Não assistir a um capítulo significava ficar sem parte da história, à mercê de uma possível reprodução ou, para as pessoas de sorte que encontraram na época a revelação de uma outra que também amava as coisas que amava, da gravação em VHS de alguém.

Foto do filme I Saw the TV Glow. Nela, estão duas pessoas. Elas estão com os rostos virados para baixo e a ponta da cabeça delas tocam entre si. Uma das pessoas tem cabelo curto e liso; a outra tem cabelo longo e enrolado, e está usando um gorro e um colar com pedras azuis. Na nuca delas está uma marca lilás brilhante, com o desenho de um fantasma de óculos. Não é possível identificar onde estão.
O elenco da produção reuniu figuras populares da música indie, especialmente na trilha sonora original composta por Alex G e na coletânea de vários intérpretes do longa-metragem (Foto: A24)

Fragmentos da memória apresentam as protagonistas, com lapsos da narração em primeira pessoa de Owen, um menino quieto protegido por uma mãe amorosa e por um pai rígido. Quando pequeno, assiste com curiosidade o anúncio de “The Pink Opaque”, transmitida às 10h30 das noites de sábado, minutos após o seu horário de dormir. Mas é durante a eleição presidencial de 1996, enquanto acompanhava a mãe, que Owen avista uma menina mais velha lendo o guia de episódios da série que deseja tão agudamente ver. Ela é Maddy, pré-adolescente desajustada, autoproclamada lésbica e grande fã do programa.

Maddy explica a série para Owen: é sobre Isabel e Tara, duas garotas que compartilham uma ligação psíquica, uma força que lhes permite lutar contra os monstros da semana, além do antagonista principal das temporadas, o grande vilão Mr. Melancholy – tropos das produções televisivas dos anos noventistas, chamados de “Monster of the Week” e “Big Bad”, respectivamente.

Foto do filme I Saw the TV Glow. Nela, estão duas criaturas idênticas. Elas possuem cabelos loiros com topete e barbas pontudas. As suas peles são cinzas e os olhos pretos. Vestem roupas brancas. Elas estão uma ao lado da outra, fazendo movimentos simétricos. A paisagem é uma floresta com o chão coberto de folhas secas e troncos caídos.
A direção de Jane Schoenbrun foi indicada para o Gotham Awards, junto das categorias de melhores atuações de protagonista e de coadjuvante (Foto: A24)

The Pink Opaque” é uma ode explícita à Buffy, A Caça-Vampiros (1997-2003), programa em que Jane Schoenbrun é declaradamente grande fã e disse em entrevista que desejava refletir no filme o queerness comumente inerente às séries da época, que “valem ser lembradas porque foi onde uma geração de pessoas LGBTQIAPN+ se reconheceu pela primeira vez”.

De nomes das personagens, à fonte da abertura, à aparição da atriz que protagonizou uma das mais queridas personagens de Buffy, A Caça Vampiros, não é justo falar de I Saw The TV Glow sem citar a importância do seriado adolescente na relação da experiência queer com a mídia. Revestidos pelo filtro da magia, os episódios evocavam temas adjacentes ao processo de amadurecimento de pessoas LGBTQIAPN+. A metamorfose do corpo, a marginalização das criaturas, a vida secreta e solitária de uma caça-vampiros, a morte inevitável e o amor àqueles que escolhemos como família; representados nas aventuras humanamente animalescas do grupo sobre a boca do inferno.

Foto do filme I Saw the TV Glow. Nela, está Maddy, pessoa branca, magra e de cabelos curtos e castanhos. Ela veste uma regata branca. Está em frente a uma parede projetada por constelações.
A atriz Amber Benson, que interpreta Tara em Buffy, a Caça-Vampiros, faz uma aparição no longa-metragem, em um momento que Jane Schoenbrun define como maternal, como homenagem à memória da personagem (Foto: A24)

Assim como Buffy e seus amigos transformam-se em símbolos de emancipação para uma geração de adolescentes que assistiram na TV a possibilidade de ser, Isabel e Tara eram equivalentes para Owen e Maddy. No instante em que, escondido dos pais, Owen testemunhou “The Pink Opaque” pela primeira vez na casa de Maddy, um vínculo permanente é formado entre ambos. Naquele instante, algo é convertido. Espaço-tempo, ficção-realidade, corpo-espírito começam a embaralhar-se.

A TV simboliza um portal para um espaço alternativo. É a válvula de escape utilizada para consolidar as suas solidões impenetráveis, unidas pela obsessão sobre duas garotas que salvam o mundo lilás de criaturas horrendas todas as semanas. Owen e Maddy pertencem lá. Esse estado anímico origina uma ânsia doída de retorno a um passado saudoso que nunca existiu, onde a satisfação é apenas atingida pela fantasia.

Eu gritei o mais alto que podia. Eu pedi perdão por tudo. E eu implorei para que Deus enviasse alguém que me salvasse. Eu tentei e tentei cavar, no esforço para sair de lá […] E então, após não sei quanto tempo, eu senti o meu corpo saindo de mim. E foi como assistir a mim através da TV, do outro lado do cômodo. E eu me distanciava mais e mais da tela, até que a tela ficou tão pequena que eu não conseguia mais me ver. […] E era eu. Era finalmente eu.

Foto do filme I Saw the TV Glow. Nela está Owen, pessoa negra, magra e de cabelos raspados. Ela está sem blusa, com o peito cortado. Dentro do corte emana uma luz brilhante que ofusca a imagem. Ele está em um banheiro público, abrindo o peito.
Justice Smith e Brigette Lundy-Paine também receberam indicações para o Gotham Awards, às categorias de melhores atuações pelas interpretações de Owen e Maddy (Foto: A24)

Mas com o passar dos anos, dos meses, das semanas, dos dias, das horas, dos minutos e dos segundos, assistir não era mais suficiente para Maddy. Diante da solidão imensa que encobria o coração da adolescente, sair daquela cidade era urgente. O tempo cada vez mais arrastava-se, o ar gradualmente subtraía-se.

Junto da partida de Maddy, a série foi cancelada. Owen permanece na mesma cidade, e cresce. Como uma pessoa produtiva que intenciona ser, ele repete que nada daquilo é real. Existe o reconhecimento doloroso de que as coisas que um dia amamos, agora, sob a luz cálida da idade, é estranho a nós. O mal-estar adolescente, o vazio angustiante nunca plenamente curado, altera-se em uma prisão da vida adulta. A televisão, no final, não é apenas um artifício de salvação; também é o aperto para encontrar significado neste mundo que, muitas vezes, parece não ter nenhum. Mas ainda há tempo.

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