Entrevista com a equipe de Continente: “queríamos um projeto que levantasse perguntas, porque não temos respostas”

Diretor, produtora e protagonista contaram as expectativas com o longa e as transformações no projeto durante os últimos anos

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A Mostra Brasil da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo é, talvez, uma das seções mais interessantes do festival. Entre filmes que desembarcam na cidade já rodeados de burburinhos e expectativa, como aconteceu com Ainda Estou Aqui e Apocalipse nos Trópicos, outros são a oportunidade perfeita para revisitar diretores brasileiros que, apesar de seus feitos, nem sempre ganham o devido espaço no circuito de salas de cinema. Ou, ainda, conhecer novos talentos.

É o caso de Davi Pretto, com Continente. O longa rodou festivais ao redor do mundo e chegou ao Brasil no Rio de Janeiro, no Festival do Rio, onde o diretor levou o troféu de Melhor Direção na competição Novos Rumos. E são novos rumos, de fato: o longa viaja ao interior para contar a história de um vilarejo imerso em uma dinâmica peculiar e violenta com o dono da fazenda local, uma espécie de senhor de engenho moderna. O Drama, no entanto, dá lugar ao Horror, em um título que se soma à já frutífera safra do gênero no país.

Pretto (diretor e roteirista), Paola Wink (produtora e roteirista) e Olívia Torres (protagonista digna de destaque) conversaram com o Tesoura com Ponta sobre a trajetória do filme, a influência dos eventos políticos e da pandemia no desenvolvimento do roteiro, e a liberdade criativa na hora de transmitir uma mensagem importante.

Davi Pretto estreou na Mostra de SP há 10 anos, com o longa-metragem Castanha (Imagem: Vulcana Cinema)

O filme estreou no Festival do Rio e ganhou o prêmio de Melhor Direção na competição Novos Rumos. Como foi a recepção por lá e quais as expectativas para a estreia na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo?

Davi Pretto: A expectativa é grande. O filme passou também pelo Festival de Munique, na Alemanha, no México, na Itália e agora também no Festival de Sitges, na Espanha. Em cada um as reações são muito diferentes, principalmente pelo lugar em que está sendo exibido. A gente entende que, no Brasil, o filme ecoa de uma maneira muito intensa, porque tem signos que trazemos de maneiras mais subliminares para pessoas de fora. Os debates aqui são sempre muito bons, muito frutíferos. As conversas no Rio foram ótimas. Em Fortaleza, onde acabamos de exibir o filme, também foi ótimo. Estamos empolgados para ver o que vai ecoar depois da sessão [em São Paulo].

Durante o Festival do Rio, você falou sobre como o roteiro começou em 2018 a partir de uma ideia inicial, mas que mudou ao longo do tempo com os eventos políticos e de saúde nesses anos. Como esses eventos influenciaram na mensagem que vocês queriam passar? 

Davi Pretto: Influencia no sentido a flor da pele, no sentido mais instintivo da coisa, de não ser tão racional. Não foi “ah, teve tal acontecimento, então vamos mudar o roteiro”. Não é essa questão. Eu acho que quando a gente faz Arte, Cinema, Música, Teatro, seja o que for, a gente lida com o nosso entorno, com a energia do nosso dia. Se o ator está em um dia ruim, a peça daquele dia vai ser diferente. Eu acho que, ao escrever um roteiro por tanto tempo, tu acaba acumulando energia. Acaba acumulando sensações de viver. A gente passou por um governo que odiava cultura, que acabou com os fundos de Cinema – e esse filme foi financiado naquele momento. A gente passou pelo Covid, vimos tantas pessoas morrendo. O medo da morte na nossa porta não tinha como não estar no resultado desse processo. Por exemplo, filmamos logo depois da vacina, então toda a filmagem passou por protocolos diários de Covid, que mudaram a maneira de se trabalhar. Tudo isso está na nossa vivência e na maneira que tentamos nos expressar. Sabíamos que queríamos fazer um filme sobre um histórico de violência no Brasil, que não só permanece como se aperfeiçoa. A gente viu isso evoluir, inclusive, nesse período. O governo Bolsonaro foi um que aperfeiçoou esse sistema de violência radicalmente nesse país.

Paola Wink: Eu entrei depois no roteiro. Eu trabalho com o Davi [Pretto] há 10 anos. Produzi os longas anteriores dele, os curtas também. Sempre trabalhei muito criativamente nos projetos. Nesse, como o roteiro foi um processo bem longo, eu estava muito envolvida em ler, comentar e trabalhar junto com Igor [Verde] e Davi, então acabei entrando junto nesse processo em andamento. A gente sempre quis que fosse um projeto que levantasse muitas perguntas e não desse respostas, porque não temos respostas. A gente não espera que o Cinema e Arte nos deem respostas, mas sim coloquem perguntas, nos façam questionar e gerar novas ideias. Sempre foi uma vontade ter múltiplos personagens e pontos de vista diversos. Isso foi crescendo e se adaptando à medida que víamos as coisas acontecendo e tentávamos também processar nossos próprios sentimentos em relação ao que vivemos. O roteiro foi se moldando a isso e se adaptando, crescendo e evoluindo. Foi um roteiro bem desafiador de escrever. Tivemos 12 versões, se não me engano. Espero que ele consiga levantar perguntas e chegar nas pessoas.

Continente chegou aos cinemas brasileiros na mesma semana que estreou na Mostra de SP (Imagem: Vulcana Filmes)

Olívia, como você recebeu esse roteiro em andamento e as mensagens a serem passadas para colocá-las em prática?

Olívia Torres: Para mim, foi saber disso tudo que o Davi [Pretto] disse e esquecer. Porque é isso: tem uma hora que você precisa estar em relação com a personagem – e a Amanda é uma personagem que goza muito desse poder. Ela é sádica, ela sente prazer na violência com o outro e com ela própria. Acho que ela curte quando cospem na cara, dela, quando brigam com ela, quando dizem que a terra não vai ser mais dela. Ela gosta do jogo de poder, dá muito prazer. Sabendo disso tudo, tendo estudado muito o roteiro, uma hora eu tive que me despedir dessas questões para conseguir embarcar nessa caminhada dela, bastante instintiva e animalesca.

O Davi comentou que o roteiro é como um mapa, um guia, mas sempre há espaço para improvisação e liberdade. Como vocês inseriram o elenco na história? Vocês propuseram as perguntas ou tentaram chegar na resposta?

Davi Pretto: A gente parte do roteiro para um outro lugar. Não queremos chegar no roteiro ou só executá-lo. Isso tem a ver com não estar tentando explicar tanta coisa. Me cansa explicar o porquê de o personagem sentir isso ou o porquê de fazer aquilo. Certo tipo de racionalização de personagem é algo que acho muito chato, porque automaticamente encaixota tudo num lugar e, se é isso, não é mais outra coisa. Para mim, é sobre experimentar. Tem muitas coisas que, às vezes, a gente começava a debater e alguém dizia “ah, mas eu vejo de outra forma”. Tudo bem, eu não me importo. Eu me importo que a gente faça e veja o que acontece. Se a pessoa acha que a personagem é mais animalesca ou mais doce… que seu personagem é mais legal ou é um horror, para mim tanto faz. O que me importa é chegar ali na hora e experimentar, decifrar o que a gente está sentido. Principalmente porque, no processo de filmagem, temos pouco tempo, infelizmente. A gente tem que experimentar. Cada take tem que ter um certo tipo de frescor, que pede certo tipo de ausência de racionalidade – e pede entrega. Sempre conversamos antes. A preparação que eu faço não tem a ver com ensaio. A gente discute cenas e ensaiamos o eu escrevo só para o ensaio, e depois vão para o lixo. Eu acho que o momento de falar fica na pré-produção. No set, é entrega. Cada take é um take, que a gente pode explorar e descobrir. E tem coisa que a gente não pode prever, inclusive emocionalmente. Se Olivia vai chorar, se Ana Flavia vai fazer outra coisa… vamos descobrir na hora. É o mais belo do Cinema, é o que mais aproxima do real: poder permitir que o acaso surja.

Olívia, como foi pegar essas questões não respondidas e para aproveitar a liberdade do roteiro?

Olívia Torres: Acho que a gente tinha consciência do que a gente já tinha filmado. Eu me lembro de, em alguns momentos, eu assumir um tom mais melancólico em alguma cena e o Davi [Pretto] falar “ah, acho que a gente já experimentou essa temperatura, será que não vamos para outro caminho agora?”. Temos sempre um registro de memória do que foi filmado, mas também memória dos personagens para criar uma melodia que não fosse uníssona. Isso era um perigo para minha personagem, que em alguns momentos não tem fala ou fica, no início, pensando sobre a relação com o pai. Então de que forma falar do pai, da primeira, segunda e terceira vez? Vamos subir o nível de um certo sentimento ou vamos mudar o sentimento? Era nesse sentido que tínhamos as discussões. E em algumas fisicalidades, de trabalhar com as diferenças.

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