Algo que sempre separou Arcane do resto das séries presentes na Netflix é a própria maneira que a série é distribuída, em formato de três atos com três episódios cada. Enquanto a plataforma encoraja as maratonas de suas séries principais, parece que a adaptação de League of Legends do estúdio francês Fortiche tem privilégios especiais de se assemelhar à televisão tradicional. Qualquer que seja o motivo para tal, isso nos dá a oportunidade de passar a semana matutando os eventos de sábado enquanto esperamos pelo próximo trio de capítulos.
Durante os últimos dias em que passei nesse estado, um momento específico da primeira temporada me veio em mente, uma cena entre o inventor Jayce (Kevin Alejandro) e seu parceiro, Viktor (Harry Lloyd): após presenciar o horror que eles foram responsáveis por introduzir ao mundo, Viktor implora à seu colega que eles tentem retificar suas ações, dizendo: “Nós nos perdemos. Perdemos nosso sonho. Na busca para sermos grandes, falhamos em fazer o bem.” É uma fala trágica e um tanto melodramática. O tipo de diálogo que só funciona quando o resto do roteiro suporta esse tipo de honestidade em sua fundação.
Ao terminar de ver o novo ato da produção, esse momento me veio à mente novamente, não apenas por sintetizar alguns dos principais temas da série, mas por servir de aviso sobre como a ambição exacerbada é um caminho perigoso. Em seus capítulos mais recentes, Arcane tropeça em seu ritmo e nos dá muito o que ver e o que pensar, mas sem necessariamente fornecer as ferramentas necessárias para fazê-lo.
Se a espera de uma semana por novos episódios foi longa para nós, mal posso imaginar o quão longa ela foi para os personagens, que passaram por alguns meses complicados fora de tela. Apesar de vermos esse tempo presente em algumas mudanças radicais de figurinos (Caitlyn e sua capa vampiresca, Vi entrando numa fase gótica, Jayce se aventurando em um cosplay de Mad Max), onde realmente vemos o peso do tempo que passou é no olhar: pouquíssimas vezes uma animação foi capaz de sinalizar tão bem mudanças tão sutis em modelagens tão estilizadas, e o mérito dos animadores da Fortiche não deve jamais passar batido nesse aspecto.
Fica imediatamente claro que Arcane voltou com fogo nas veias. Através de uma montagem musical ao som de Paint The Town Blue vemos que a opressão de Piltover sobre os habitantes da Subferia foi crescendo nos últimos meses, na tentativa de capturar a elusiva Jinx (Ella Purnell). Sob o conselhos de Ambessa (Ellen Thomas), Caitlyn (Katie Leung) aumenta a pressão para que os próprios habitantes de Zaun a entreguem, inadvertidamente transformando-a em um ícone da possível revolução. Vi (Hailee Steinfeld), agora sem a irmã nem a ficante, se joga na bebida e na violência para escapar dos próprios pensamentos e afogar seus erros. As novas faixas da trilha sonora original, agora marcadas por tons de punk rock e heavy metal, sinalizam este como o capítulo da raiva e da bagunça, orquestrando a introdução de seu personagem mais bestial até então ao final sangrento e visceral do quarto episódio.
Jinx, que agora ocupa o papel de irmã mais velha de Isha (Lucy Lowe), uma criança de Zaun que a empurra em direção ao papel de símbolo, tenta se esquivar das expectativas que os outros buscam por sobre ela, mas é forçada a agir quando zaunitas são levados injustamente para a prisão de Stillwater, a mesma em que sua irmã estava presa nos últimos seis anos. Sendo ou não uma reparação pelo tempo em que ela esteve presa, é lá que eles encontram Warwick, a fera gigantesca de Singed (Brett Tucker), reanimada usando o corpo de Vander (JB Blanc). O pai adotivo de Jinx e Vi, mesmo através da névoa sangrenta em sua mente, é capaz de acordar por um momento, dando uma desculpa para reunir as irmãs e resolver os ressentimentos que existem entre elas.
O quinto episódio, Blisters and Bedrock, representa Arcane em seu estado mais puro: uma mistura elegante de visual e sonoridade com conceitos ousados que permitem que sua ação dramática aconteça sem prejudicar o ritmo do texto entre as personagens. No caso, vemos o relacionamento entre Vi e Jinx progredir em um túnel coberto por cogumelos bioluminescentes que brilham conforme o ritmo dos sons ao seu redor. A tão esperada reunião é menos uma reconciliação entre inimigas e mais uma briga infantil em que ambas encontram algo que haviam considerado ter perdido há muito tempo: família. Ao ver o jeito que Jinx cuida de Isha, Vi vê a si mesma como a irmã que costumava ser e, ao encontrarem uma carta antiga de Vander destinada à Silco (Jason Spisak), o eco da tragédia que as separa se torna mais pronunciado.
Um dos grandes temas que o segundo ato dessa temporada explora é o amor familiar, especificamente como todos ansiamos por ele de uma forma ou outra, mesmo que fora da própria família. Ainda de luto pela mãe e carente de influências que reprimam seus piores impulsos, Caitlyn assume assustadoramente fácil o papel de ditadora, encorajada por Ambessa, que possivelmente vê nela o que sua filha poderia ter sido. Presa pela misteriosa Rosa Negra, Mel (Toks Olagundoye) reencontra seu irmão perdido e descobre um segredo sobre a mãe que talvez explique a presença dela em Piltover. Na comuna que estabeleceu nas trincheiras, Viktor encontra propósito nas tragédias que lhe aconteceram e se torna uma figura religiosa para aqueles que cura.
Entre tantas dinâmicas diferentes, é a família “monstruosa” de Vi que mais se destaca. Em um flashback para o passado nem tão distante, mas que parece uma realidade completamente diferente, vemos pela primeira vez a mãe das irmãs, Felicia (Jeannie Tirado), tendo uma conversa com Vander e Silco, que na ocasião ainda eram todos bons amigos. Ela confessa estar grávida e pede a ambos que façam do ideal de Zaun uma realidade para sua filha. É um dos momentos mais tocantes e trágicos da série até então, em que ponderamos um futuro que nunca viria a acontecer, até o presente voltar a todo vapor e percebermos que, apesar de imperfeito, ele pode ser bom. Assim como numa música de rock, há certa beleza na bagunça e nas imperfeições, uma afirmação rebelde de humanidade contra si mesma.
Honestamente, parte de mim gostaria de ver uma temporada inteira de Arcane com esse tipo de temática punk rock, anárquica e com um toque de terror. De fato, a impressão que fica ao final desse segundo ato é que há episódios inteiros que poderiam ter sido estendidos para acomodar melhor os diversos estilos de seu roteiro, seja em arcos próprios ou até mesmo temporadas inteiras. Se no ato anterior ficou parecendo que a história estava acelerada, aqui parece que ela está em queda livre quando vemos diversos personagens de núcleos diferentes finalmente se encontrando e trocando apenas uma ou duas palavras antes do próximo acontecimento apocalíptico.
Em meio a tantos encontros esperados, algumas ausências ficam ainda mais proeminentes: o que aconteceu com o resto do esquadrão de Caitlyn, introduzido no ato anterior mas que aqui está praticamente isento? Onde estão Ekko (Reed Shannon) e Heimerdinger (Mick Wingert), desaparecidos junto com Jayce mas que não retornaram com o mesmo? O que exatamente é a Rosa Negra e o seu conflito com Ambessa? Arcane não precisava de mais tempo para responder essas perguntas, mas sim de tempo para que seus próprios personagens ponderassem por si sós. Fora algumas cenas bem pontuadas, tais como o flashback de Vander e Silco, faltam momentos que deixem o texto respirar devidamente, que deixem seus personagens habitarem livremente a cena antes que o próximo beat aconteça.
O maior inimigo de Arcane até agora é o anúncio prematuro de seu encerramento. Não apenas pelo efeito que isso causa em quem assiste, mas na pressão de seus realizadores, que certamente tem histórias o suficiente para bem mais do que essa temporada. Apesar de carregar consigo um orçamento nada humilde, a série da Netflix é um dos únicos empreendimentos desse calibre que parece valer o seu preço, deixando no chinelo muitas outras produções que inexplicavelmente custaram o mesmo valor. É difícil imaginar um mundo onde Arcane teria mais do que apenas duas temporadas, mas talvez seja importante imaginar justamente por isso: para nos indignar.
Não me leve a mal: em nenhum momento Arcane ficou ou vai ficar ruim. Depois de 15 dos melhores episódios animados que eu já vi na minha vida, é simplesmente impossível não ter fé na série. Me preocupo apenas que o fato de ter menos episódios do que merece vá impedir que ela encontre seu lugar no panteão de seriados em que certamente deve estar. Mas essas são preocupações para o futuro, e como a série faz questão de apontar, vivemos no agora, imperfeito e falho como é.
Ao final de seu segundo ato, Viktor, o cientista tornado mártir e o mártir tornado messias, entrega outra frase de valor melodramático: “Aquilo que nos inspira para fazer o nosso maior bem é também a causa do nosso maior mal.” E, assim como na primeira temporada, a sinceridade do texto da série me faz acreditar que sim. Que há uma beleza na dicotomia entre coisas boas e ruins, como sobre as mais nobres intenções nos levam aos maiores fracassos. Em seu último segundo ato, a produção destaca seus maiores valores e alavanca o medo de que seu final não seja capaz de satisfazer todas as portas que foi capaz de abrir. No fio da navalha entre expectativa e medo, Arcane mostra o seu potencial e nos faz querer acreditar em sua rebeldia.
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