Ele flutua sobre as águas e se transforma em serpente. Tem pacto com o diabo e já acumula mais de 150 anos. É assim que a jovem Cusumbo conhece a história de Don Goyo, lenda local sobre um homem que vive na floresta e possui poderes sobrenaturais. Ela, que trabalha incansavelmente em uma fazenda e vive sob a violenta figura do pai, é cativada de cara pelo suposto feiticeiro, dividida entre o medo e o fascínio.
Lançado em 2023 e parte da Competição Novos Diretores da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Don Goyo é um filme sobre a tentativa de esperançar em um universo de brutalidades. Cusumbo ganha vida na interpretação sensível de Jenifer Carabalí, sempre muito consciente do seu papel, mas escondida nas sombras da rotina entre a plantação de cana-de-açúcar e a submissão aos homens da sua vida.
Primeiro longa-metragem de Jorge Flores Velasco, o longa é baseado no livro de mesmo nome do escritor Demetrio Aguilera Malta, natural da cidade de Guaiaquil, no Equador. A obra foi lançada em 1933 e é considerada a primeira novela ecologista da América Latina, além de um grande marco no movimento do realismo social, tanto pela discussão sobre a preservação da natureza, quanto pela denúncia das condições do trabalhador rural.
Na versão para as telas, Flores Velasco também levanta a questão do patriarcado, transformando o Cusumbo do livro na Cusumbo de Carabalí – mudança explicada pela necessidade de mais mulheres protagonistas no cinema equatoriano e pelo tom machista da obra original, segundo o próprio diretor. Por isso, durante os 70 minutos da produção, seguimos os passos da personagem “entre o facão e a bebida”, que, mesmo presa na realidade desigual, ainda sonha com um futuro tranquilo e em paz.
Inicialmente parte de um projeto universitário, Don Goyo foi crescendo entre a comunidade. O longa foi filmado em uma fazenda real, no Bosque Protector Santa Rosa, um dos poucos bosques primários da cordilheira ocidental dos Andes do Equador, como explica os créditos iniciais. É por lá que Don Goyo se embrenha, buscando suas ervas e realizando rituais com moradores locais.
O personagem-título, interpretado por Carlos Chiriboga, é um mistério durante todo o filme. Nós o vemos caminhando entre as altas árvores, muito comedido em suas palavras e sempre um passo distante de Cusumbo. Ela, que tenta quebrar o ciclo em que vive a todo custo, acaba protagonizando seu próprio ato de violência e encontra no velho homem um consolo, um encorajamento e um motivo para seguir em frente.
Com os talentos de Chiriboga e Carabalí frente a frente, é como se tudo que assistimos na última hora finalmente chegasse a uma conclusão. É sentado ao lado da jovem perdida que Don Goyo, calado a todo momento, encontra motivos para discutir sua origem e sua missão em um monólogo potente sobre a vida que corre pela floresta e sobre um futuro mais livre para ambos.
As doses exponenciais de suspense ao longo da narrativa não conseguem minimizar a sensação melancólica que o final de Don Goyo causa no espectador. Para nós, brasileiros, um pouco distantes geograficamente dos mangues equatorianos, mas muito próximos da discussão sobre colonialismo e da urgência da preservação das matas, a realidade de Cusumbo está a um grito de distância.
Deixe um comentário