Qual melhor lugar para abordar os traumas brasileiros do que no Cinema de horror? Em 2023, Propriedade (que já havia estreado no Festival do Rio no ano anterior) cutucou a ferida da escravidão moderna e se rebelou contra os patrões. Neste ano, é a vez de Continente revisitar os desdobramentos de um passado colonial e latifundiário sob a ótica do terror, desmascarando uma relação de codependência extrema.
A obra passou pela seção Première Brasil: Competição Novos Rumos do Festival do Rio 2024 e chegou à 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo antes de estrear nos cinemas. Na trama, Amanda (Olivia Torres) volta ao país natal após anos morando na França para visitar o pai, já em seu leito de morte. Ele deixa para trás funcionários leais e uma fazenda que emprega todo o vilarejo, mas também guarda uma dinâmica própria. Quando o fazendeiro falece, cabe à herdeira das terras tomar seu lugar.
O longa, dirigido pelo porto-alegrense Davi Pretto, se apoia na tensão para estimular a curiosidade. Amanda está de volta ao local onde nasceu e cresceu, uma região isolada no sul do Brasil, mas agora como uma forasteira. Acompanhada do namorado francês, Martin (Corentin Fila), a recepção esquisita por parte dos moradores e funcionários da casa do pai cria um clima de hostilidade com os visitantes, que não têm data para retornar.
As incertezas rondam boa parte da primeira metade de Continente, sustentadas por uma direção sufocante de Pretto. Os planos fechados e atentos aos detalhes, e a fotografia fria de Luciana Baseggio colaboram na criação de um ambiente de apreensão, em que a totalidade do que acontece nos ambientes nunca está completamente ao alcance – nem de Amanda e Martin, nem a nossa. Se por um lado a câmera nos obriga a decifrar por conta própria, por outro instiga a sensação de medo do que não vemos.
Trabalhando com a ausência de explicação, o longa desenvolve uma mitologia própria. A distopia de um vilarejo que parece isolado no tempo e espaço, com seus moradores dependentes do serviço na propriedade do patrão, flerta com uma relação histórica no Brasil. A figura à la senhor de engenho explora a mão de obra de seus subordinados dando pouco em troca, enquanto os habitantes, zumbificados e retirados de seu livre arbítrio, igualmente não conseguem quebrar o ciclo de codependência.
Continente cresce ao abraçar o horror da situação, escapando de uma crítica social didática e pouco criativa. Quando Amanda finalmente assume o lugar do pai, o roteiro a seis mãos – Pretto, Paola Wink (que também é produtora do longa) e Igor Verde – engata nos pactos de sangue travados pela sobrevivência naquela região. Em uma metáfora bastante explícita, patrão e subordinados se alimentam uns dos outros.
As cenas chocantes e a inventividade da trama não deixam espaço para ninguém subestimar o potencial aterrorizante do cinema de gênero brasileiro. Nesse ponto, o conjunto das atuações também eleva a obra. Por mais que os personagens sejam pouco explorados individualmente, a maior parte dos moradores da vila vive a abstinência à flor da pele, enquanto outros, como Helô (Ana Flavia Cavalcanti), a única médica do local, se encontra em uma encruzilhada entre o desejo e a repressão.
No ápice do longa, o tão esperado acerto de contas vem. Com o simbolismo como pano de fundo, o que ocupa a tela é o terror em seu estado puro, a selvageria tomando conta de uma sociedade que se conforta com sua própria noção de civilização. A direção, no entanto, não se contenta em filmar o acordo como uma simples troca comercial, um pagamento ao final do mês. O sangue escorrendo se mistura a um prazer quase sexual, um resquício de vida para aqueles em estado catatônico.
E se era esperado que Amanda acordasse no dia seguinte chocada com sua própria vocação pela brutalidade, a final girl não é nenhuma mocinha traumatizada, ansiosa para escapar e deixar tudo que viveu para trás. Pelo contrário, o medo dá lugar à sede. A conclusão, porém, demora a vir e, com uma mudança de rumo nos minutos finais, Continente deixa uma mensagem em aberto. Agora, quem bebe o sangue de quem?
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