É difícil pensar em um nome mais importante no cenário de videogames cooperativos do que a Hazelight Studios, o estúdio sueco por trás dos aclamados A Way Out e It Takes Two. Publicados pela Electronic Arts sob o selo EA Originals, esses jogos se popularizaram ao capturar uma parcela cada vez maior do público gamer, que ansiava por aventuras old school, sem a presença das temíveis microtransações ou de modelos de live service. It Takes Two, a aventura encantadora de um casal disfuncional tentando escapar de um mundo de fantasia em miniatura, foi especialmente marcante no auge da pandemia de COVID-19, em que a maioria de nós ansiava por conexão mais do que nunca, conquistando até mesmo o prêmio máximo no The Game Awards.
Apesar de sua excelência inspirar comparações muito aptas com outros clássicos contemporâneos, os títulos da Hazelight sempre possuíram um charme próprio bastante peculiar, apostando em tramas emocionantes e dramáticas, mas com doses altas de humor nonsense que parece ser feito especificamente para que você e seu companheiro de jogatina morram de rir enquanto apertam os botões. Seus jogos parecem ser cheios de um jeito que poucos hoje parecem investir: cheios de criatividade, dispostos a introduzir novas mecânicas constantemente e brincar com a sua capacidade de aprendê-las. De fato, eles são tão cheios que, jogando Split Fiction com minha amiga, meu único medo foi de que a criatividade do estúdio pudesse ter se esgotado. Felizmente, eu não poderia estar mais errado.

A narrativa de Split Fiction se dá dentro de uma simulação, na qual Mio (Kaja Chan) e Zoe (Elsie Bennet), duas escritoras de gêneros distintos, estão presas por uma máquina capaz de tirar as ideias de suas cabeças e torná-las realidade. O vilanesco CEO da empresa, Rader (Ben Turner), justifica o roubo da propriedade intelectual das duas em monólogos egocêntricos e analogias pouco sutis ao problema de IAs generativas. É uma premissa simples e que, à primeira vista, é apenas um eficiente pano de fundo para que o estúdio possa brincar com diferentes gêneros e clichês. Como seu nome prevê, Split Fiction é sobre a dualidade entre os gêneros de fantasia e ficção-científica, em como eles diferem e, mais importante, como eles (e consequentemente suas protagonistas) se sobrepõem.
Simultaneamente uma história de “peixe-fora-d’água” e de “opostos se atraem”, Split Fiction se molda quase que imediatamente ao senso de absurdo e ridículo inspirado pelos clichês que aborda, jogando os jogadores em uma série frenética de cenários antes que suas protagonistas entendam o que precisam fazer para escapar. O jogo espertamente nos posiciona da maneira que suas protagonistas se enxergam, personagens em uma simulação, direcionados pelo level design magistral da desenvolvedora. Graças a essa decisão criativa o jogo elegantemente elimina a barreira entre o real e o digital com a sutileza de uma marreta.
Nós assumimos o papel das escritoras e, desse ponto em diante, passeamos por suas criações, intercaladas por uma série de histórias paralelas que guardam alguns dos segredos mais criativos do game. Chega a ser hilário perceber que, por mais preparados que nós dois pensávamos estar para o que Split Fiction poderia entregar, nenhum de nós jamais chegou perto de prever o que cada um desses cenários guardava em termos de mecânicas ou visuais. É uma apresentação tão eclética e exacerbada que eventualmente fica claro que a Hazelight não liga em limitar seus jogos para o público infantil. Os gráficos vibrantes e as narrativas por vezes “bobinhas” contrastam explosivamente com momentos genuinamente agonizantes e visuais desconcertantes.

Split Fiction faz It Takes Two parecer um protótipo, um teste dos limites que a desenvolvedora estava se preparando para cruzar em seu próximo projeto. É uma não-sequência que remete ao salto criativo entre Arkham Asylum e Arkham City, ou Uncharted e Uncharted 2: jogos que retém as fundações, mas expandem tanto o escopo da sua ambição que fazem seus antecessores quase que obsoletos, apesar de estarem longe de ser isso. É uma experiência extremamente polida, do tipo que raramente se vê no cenário AAA. Durante as 12 horas em que passamos jogando, quase não houveram problemas técnicos, otimizando o desempenho da Unreal Engine 5 para rodar sem soluços e com um framerate estável, coisas essenciais num título cooperativo.
Mas o comprometimento do estúdio com esse tipo de experiência já é conhecido. Assim como em seus títulos anteriores, basta um jogador ter o título para poder jogar com um amigo. Esse tipo de atitude pró-consumidor conta bastante ao criar boa vontade numa época de inflação e aumento de preços. Acoplado com o fato de ser vendido na faixa dos 200 reais, Split Fiction é uma aposta que a Hazelight faz não apenas na qualidade de seu trabalho, mas na fé que depositam nos jogadores ao disponibilizar uma experiência tão completa e edificante por um valor tão justo.

Com Split Fiction, a desenvolvedora fez um título que parece quebrar a barreira de gêneros constantemente, prestando homenagens à diversas outras produções ao longo do caminho e belamente incorporando suas mecânicas no meio do caminho. Apesar de não ser o jogo mais visualmente impressionante da última geração, o estúdio implementa tantas mecânicas diferentes e que interagem consigo mesmas de jeitos tão inventivos que Split Fiction acaba se tornando uma das poucas produções a justificar os avanços tecnológicos feitos até aqui e as possibilidades que o futuro reserva para os videogames.
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