O que mais chama atenção no começo da segunda (e infelizmente última) temporada de Arcane é como as técnicas de animação do estúdio francês Fortiche estão em uma categoria inteiramente separada do resto da indústria. Não só na mistura de estilos visuais 2D e 3D, mas no peso dado às mais diversas interações entre personagens: do mais tenro toque à maior agressão, há uma naturalidade e fluidez nos movimentos que contrasta e ao mesmo tempo complementam os visuais maximalistas e coloridos.
Baseada no universo do jogo League of Legends, a série criada por Alex Yee e Christian Linke volta na Netflix para mais uma leva tripla de capítulos que montam o quebra-cabeças de um mundo steampunk marcado pela desigualdade de classes. Após as ações drásticas de Jinx (Ella Purnell) no final da primeira temporada, as tensões entre Piltover e Zaun não poderiam estar mais altas, com ambas as cidades gêmeas sofrendo pelo vácuo de poder causado pelos eventos anteriores. No primeiro ato de seu segundo ano, o conflito político é canalizado pela caçada implacável de Caitlyn (Katie Leung) pela assassina de sua mãe e no luto profundo que se transforma em veneno, contaminando sua relação com Vi (Hailee Steinfeld).
Os rumores de que haveria pelo menos cinco temporadas planejadas para a série, mas que teriam se diminuído por conta de seu impetuoso custo de produção são provavelmente verdadeiros, visto como os três primeiros capítulos do novo ano se movem rapidamente (porém não sem graciosidade) sobre os dias que se passaram após as mortes causadas por Jinx. A dor de Caitlyn é contada através da integração dos estilos visuais junto com as músicas compostas para a série, o que cria a emulação de um videoclipe já característica da produção, mas que aqui é executada de maneira bem menos diegética do que em 2021.
Apesar de fornecerem mais oportunidades para a o visual e a sonoridade da série brilharem, esses segmentos parecem não ser motivados unicamente pela criatividade de seus criadores, mas pela necessidade de transmitir sentimentos e emoções complexos rápida e efetivamente, de modo à não exaurir demais seu texto já carregado. É uma estratégia óbvia, mas não ineficaz: olhando para os três primeiros episódios, nenhuma das viradas que o roteiro faz parece forçada. Apenas quando olhamos para o quadro geral que notamos o quão apressada está a narrativa, ainda mais quando comparada à paciência exibida na primeira temporada, que foi construindo pacientemente seu mundo e conquistando tanto os fãs do jogo quanto espectadores casuais.
Há vários momentos em que a série parece fazer referências a personagens específicos do cânone de League of Legends, mas que significam pouco para aqueles que acabaram de chegar à Runeterra. São as raras vezes em que a ficção incrivelmente bem embasada do seriado é ameaçada por sua raiz como adaptação de videogame, mas elas de fato acontecem, principalmente nas cenas finais de cada capítulo, buscando provocar com fragmentos de um personagem que entrará em jogo nos próximos episódios. Se por um lado Arcane se apressa, por outro o modelo de exibição contribui para que haja um certo respiro entre cada um dos chamados atos, deixando que tanto as personagens quanto a audiência se acostumem com o novo ritmo e o atual estado da narrativa.
Você não precisa que eu te diga que Arcane é um espetáculo visual e sensorial, você provavelmente já assistiu a primeira temporada e já chegou à essa conclusão sozinho. Se você for como eu, você aliás já reviu ela de novo e de novo á procura por mais detalhes incríveis de sua animação. Não há como exagerar: o que o talento do estúdio Fortiche consegue realizar é um empreendimento notável não apenas em escala mas em forma, misturando habilmente dezenas de estilos diferentes com uma eficiência assustadora. Apesar de seus episódios serem relativamente longos, não há um único instante em que não haja algo admirável acontecendo em cena, até mesmo em planos tecnicamente simples, mas que são luxuosamente compostos e coloridos.
A trilha sonora, tão luxuosa quanto, também continua envolvente como sempre, encabeçada pelo tema de abertura icônico do Imagine Dragons e misturando elementos de pop, rap e até mesmo K-pop. Com participação dos vocais poderosíssimos de Sheryl Lee Ralph (Abbott Elementary) em uma de suas faixas principais, a música é um elemento cada vez mais essencial desse ambicioso empreendimento, que fica cada vez mais definido pela integração inovadora de imagem e som. Outro dos destaques fica para a versão remixada de Heavy is the Crown, cantada pela nova configuração do Linkin Park e que também serviu de tema oficial da última edição do campeonato mundial de League of Legends. Com vocais mais contidos de Emily Armstrong e Mike Shinoda e batidas bem mais pesadas, ela marca com precisão a ominosa cena final do primeiro episódio.
O roteiro da série sempre buscou ancorar o drama político por meio dos conflitos interpessoais de suas personagens. Na primeira temporada, a tensão entre as duas cidades é personificada no relacionamento de Vi e Jinx, quebrado pela violência inescapável entre as duas sociedades e condenado pela dor que se recusa a ser esquecida. Mesmo ao final da temporada anterior, quando a paz parecia uma possibilidade tangível, essa dor se faz ouvida de maneira explosiva e definitiva, um lembrete oportuno de que o sofrimento sempre precisa ir para algum lugar e que seguir em frente nunca é tão simples quanto parece.
Nesse contexto, o ato de estreia começa com a difícil tarefa de nos reintroduzir aos personagens em sua hora mais escura, em que nada parece certo e todos os papeis parecem ter se invertido. Vi agora é um espectro passeando sem propósito por Piltover, não mais bem vinda na mansão dos Kiramman e indesejada em sua própria cidade natal. Aceitando relutantemente o pedido de Caitlyn de se juntar à força tarefa dedicada à eliminar sua irmã, ela claramente espera que dar cabo de Jinx possa expiar seus pecados ao mesmo tempo que finalmente a condena. Hailee Steinfeld projeta sua voz para dentro de maneira brilhante, substituindo a irmã preocupada pelo espectro de redenção, dando textura e cadência ao conflito interno da personagem, presa entre o amor que perdeu e aquele que encontrou.
Jinx, por sua vez, é a pessoa mais procurada da cidade, não apenas por seus ataques à Piltover, mas por ter inadvertidamente criado as condições para que Zaun caísse numa guerra entre gangues cada vez mais sangrenta. Lá, seus devaneios surreais parecem minguar conforme sua própria solidão se solidifica, até que um encontro ao acaso parece dar a ela novas razões para continuar lutando. Sevika (Amirah Vann), agora sem a liderança de Silco (Jason Spisak), precisa abrir seu próprio caminho entre as diversas gangues de Zaun, guiada por seu próprio senso de lealdade para com sua cidade e aqueles que a habitam, levando-a à uma aliança temporária com Jinx. É uma dinâmica inesperada e intrigante, criando uma nova janela para a cidade de baixo e mostrando como, mesmo sob o peso de todos os conflitos, ainda há um elo de lealdade entre os habitantes de Zaun que a cidade de cima talvez nunca irá entender.
Conforme Vi se aproxima de Jinx, os outros conflitos da temporada vão se desenhando através de outros encontros surpreendentes e ausências sentidas. Separado de seu antigo parceiro de laboratório, Jayce (Kevin Alejandro) têm de encarar seu papel na criação das armas que estão acarretando tanta destruição, continuando o arco iniciado na temporada anterior e se despindo da imagem de grande inventor e arauto do progresso. Colocando a busca de Ekko (Reed Shannon) e Heimerdinger (Mick Wingert) para descobrir a fonte da corrupção de Zaun em encontro direto com a culpa de Jayce, o roteiro cria a situação ideal para que seus personagens revelem mais sobre a natureza do mundo ao seu redor ao mesmo tempo que lidam com suas próprias falhas.
Isolada política e emocionalmente, Mel (Toks Olagundoye) tenta desesperadamente encontrar um caminho pacífico para traçar uma resolução duradoura entre as duas cidades, mas é constantemente desafiada por sua própria mãe, Ambessa (Ellen Thomas), agora uma das principais personagens do jogo político, representando uma nação de conquistadores e interesses obscuros, fazendo soar alguns alarmes sobre o abraço gradual do fascismo numa sociedade pós-industrial.
Porém, se há uma personagem principal nesse primeiro arco de episódios, essa personagem é certamente Caitlyn Kiramman. Antes uma policial idealizadora e aparentemente simpática às dores do povo de Zaun, ela vira um retrato poderoso de como o luto é capaz de mudar alguém. Vemos sua lenta descida para abraçar seus sentimentos mais sombrios, encarnando as qualidades de Piltover que ela um dia repudiou, agora justificados pela morte de sua mãe, Cassandra (Abigail Marlowe). Ela não apenas canaliza o rancor dos habitantes de cima pelos de baixo, mas como, no final das contas, o sofrimento de uns realmente vale mais do que o de outros. Ela se sente no direito de pedir para que Vi use o distintivo daqueles que assassinaram seus pais sem nem antes considerar o que aquele gesto significa porque para ela ele realmente não significa nada. Apenas a dor dela existe no mundo, e ela ameaça consumi-lo nos próximos capítulos.
Se a alegoria à ascensão do totalitarismo é um tanto óbvia, ela é sinistra o suficiente para que nós fiquemos assombrados pelo arco da personagem, manipulada mais facilmente do que imagina pelas suas próprias emoções. “Agora eu entendo como é fácil odiá-los”, ela diz para si mesma, assustando pela facilidade com que se rende à uma visão miópe do conflito e abraçando para si um papel que sua mãe não desejava para a sua única filha. A mais provocativa personagem desse primeiro ato, Caitlyn representa Arcane em sua melhor forma, evocando uma história sobre dor e poder através de seus personagens falhos e do mundo sujo e deslumbrante que eles habitam, se utilizando de todas as ferramentas disponíveis para nos envolver em sua ficção.
Começando seu caminho prematuro em direção ao final, Arcane volta para as telas provando que só compete consigo mesma.
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