Han Ryner é um daqueles autores que, não fosse pela distância geográfica, poderia figurar ao lado de nomes brasileiros que, no século XIX, contribuíram para a construção de narrativas queer na Literatura nacional. Assim como Raul Pompeia e Adolfo Caminha, o autor francês deu voz a personagens dissidentes, especialmente ao protagonista de sua obra, cuja identidade de gênero pode ser interpretada hoje como próxima da experiência transgênero ou não-binária.
Tanto O Ateneu (1888), de Pompeia, quanto Bom-Crioulo (1895), de Caminha, retrataram personagens enrustidos ou explicitamente homossexuais. Em Bom-Crioulo, por exemplo, o tema central é o romance entre dois marinheiros, Amaro e Aleixo. A obra tem como protagonista um homem negro, gay e ex-escravizado, que foge da escravidão e tenta reconstruir a vida na Marinha. Já A Menina Que Não Fui, publicado em 1903, vai além ao abordar de forma direta e ousada a liberdade sexual e a dissidência de gênero.
Lançado pela Editora Ercolano, conhecida por seu trabalho de arqueologia editorial, o livro ganha nova vida com a tradução sensível de Régis Mikail e prefácio assinado por ninguém menos que João Silvério Trevisan, um dos fundadores do jornal Lampião da Esquina e autor de Devassos no Paraíso.
Da mesma maneira que no livro de Raul Pompeia, A Menina Que Não Fui é narrado em primeira pessoa por um adulto que revisita suas memórias mais íntimas vividas em um internato, por meio de cartas, diários e confissões, em uma linguagem naturalista cujos desejos são marcados pelo conflito entre identidade e repressão social.
A Instituição Saint Louis de Gonzague era um asilo de carícias viris, uma cloaca de alegrias vergonhosas. Em toda parte, atrás dos vastos plátanos dos imensos pátios; na sala de estudos, abrigados pelas carteiras elevadas; em todos os cantos perdidos trocavam-se beijos o dia inteiro. À noite, o dormitório ganhava uma infame vida de sussurros e toques.
O enredo acompanha as lembranças de François de Taulane, um monge órfão e homossexual, atormentado desde a infância por sua atração pelo sexo masculino e por um possível desconforto em relação ao próprio gênero. Já nas primeiras páginas, Taulane denuncia a hipocrisia da sociedade francesa, especialmente de figuras religiosas incapazes de sustentar a moral que pregavam, em uma época em que a homossexualidade era tratada como patologia.
A narrativa combina ficção com elementos da vida pessoal de Ryner, já que muitos dos cenários descritos foram frequentados pelo próprio autor na infância, como o emblemático Saint Louis de Gonzague, colégio interno onde o pequeno François é transformado na ‘Rainha Françoise’ e apelidado de ‘mulherzinha’ por colegas que demonstravam tanto desprezo quanto fascínio por ele.
Eu te proíbo de me chamar de “seu querido”. Não sou seu querido. Serei seu amante, seu mestre e seu inimigo. Sinto desejo por você, mas te odeio, você me dá nojo.
Ser tratado no feminino não representava um incômodo para Taulane; ao contrário, era motivo de orgulho. Prova disso é que o protagonista se apropria dos xingamentos que recebe e chega a fazer circular uma lista no colégio para que seus pretendentes saciem o desejo de ficar com a ‘mulherzinha’.
A partir de hoje, a mulherzinha é uma puta feliz em dar prazer a quem quer que goste do prazer. Serei primeiramente sua, já que você pediu primeiro. Em seguida, virão Rivail, que pediu em segundo lugar, e Bernard, cujo pedido veio a mim em terceiro lugar. Faça esse papel circular por todos (exceto Dargaud e Romanes). Aqueles que amam a mulherzinha, inscrevam-se. Vai chegar a vez de cada um. Quando tiver acabado, começaremos uma nova lista.
Em francês, o título original La Fille manquée pode ser traduzido como ‘a menina falhada’, refletindo a forma como os outros meninos enxergam o corpo de Taulane. O próprio François expressa o desejo de ser mulher, não por uma identificação plena com o gênero, mas para ocupar o lugar submisso reservado às mulheres nas relações com os homens.
Entre ‘carícias’, termo repetidamente utilizado pelo personagem para se referir a formas de afeto, talvez como um recurso do autor para evitar ser explícito demais, François descobre o prazer sexual, ora agressivo e violento, ora ingênuo. É nessa violência que se manifestam traços de sadismo, tanto nas relações que estabelece com outros meninos quanto na maneira como é tratado por eles. As agressões dos colegas mais fortes, especialmente daqueles de rosto bonito, são por vezes percebidas por ele como carícias, num jogo ambíguo entre desejo e dor que atravessa toda a narrativa.
Nos combates entre crianças, os punhos e os pés são as únicas armas permitidas. Já eu, fazia uso de unhas e dentes. Levava o maior número de golpes, os mais violentos; meu agressor quase sempre tinha o rosto e as mãos ensanguentados. Havia uma exceção. Se meu inimigo fosse belo, eu não ousava estragar seu semblante e levava os golpes com uma alegre paralisia, como se fossem carícias. E, quando me permitisse, voltava a provocá-lo sem agredi-lo: eu precisava renovar meu êxtase ferido.
Esse lirismo, no entanto, não suaviza a visão misógina que o personagem expressa. Sua fala depreciativa sobre as mulheres parece, em muitos momentos, um reflexo de seu próprio auto-repúdio. Ao atacar o feminino, ele também ataca a parte de si que não se encaixa no ideal masculino dominante.
Ouvia repetirem ao meu redor que o femininamente infame Romanes era covarde como uma mulher.
Han Ryner não impõe qualquer julgamento moral sobre seu protagonista. Ao contrário, oferece ao leitor um retrato profundamente humano e ambíguo de alguém que desafia as fronteiras do gênero e da sexualidade, mesmo sem conseguir nomear sua própria diferença.
É curioso pensar que textos como esse, que retratam outras possibilidades de identidade, ainda sejam pouco discutidos e permaneçam inacessíveis para grande parte dos leitores, seja por terem sido escritos em outro idioma, seja por terem sido negligenciados ao longo do tempo. Ainda assim, A Menina Que Não Fui se consagra como uma obra pioneira e essencial na construção de narrativas queer.
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