Há programas que espelham o país melhor do que pesquisas de opinião. O MasterChef Brasil chegou em 2014 e hoje mede o nosso apetite por espetáculo, a tolerância ao erro e a paciência com personagens maiores que suas próprias criações. Enquanto isso, a audiência negocia, semana a semana, a própria escala de justiça. Onze anos depois, o reality procura manter-se e reinventar o que já foi um fenômeno nacional e ocupa um lugar estranho entre um ritual coletivo e campeonato de microdramas. Antes esperávamos meses por uma temporada nova e todo um espetáculo de seleção que já não existe. Hoje, sabemos que se ligarmos a televisão na Band, às terças-feiras às 22:30, ele estará lá. Em qualquer época do ano.
O carro-chefe e principal responsável pela folha de pagamento da Bandeirantes deve seus lucros aos desdobramentos de modalidades que vão além do Amadores, alcançando novos nichos e públicos. No Profissionais, sua versão de alto apuro troca a curva de aprendizado pela demonstração de repertório, ego e precisão. O Kids responde pela camada lúdica, provas encurtadas, linguagem mais leve e escolhas de ingredientes menos punitivas, já o MasterChef+ (+60) desloca o foco para memória, afeto e elegância de gesto, sem abrir mão de rigor. Ainda temos A Revanche, que revisita trajetórias interrompidas. No perímetro digital, que sempre marcou o programa por sua disponibilização gratuita no YouTube um dia após o ao vivo, o Creators (exclusivo da plataforma) testa formatos e públicos, caminhando à primeira edição do MasterChef Celebridades, confirmada com Valesca Popozuda e Rachel Sheherazade no elenco.
Dentro de cada uma dessas edições estão também as modalidades de prova, que funcionam como dispositivos narrativos. A caixa misteriosa encena o choque entre repertório e surpresa; o mercado em três minutos fabrica decisões sob risco; o atual escasso serviço de eventos externos media liderança, logística e medo do real; os duelos isolam técnica sob microscópio. Há ainda leilões, provas conceituais, de reprodução e as ambíguas provas da criatividade, em que a ideia vale quase tanto quanto o resultado. Cada tipo de desafio puxa um fio: de quem cozinha, da edição e do espectador, que preenche lacunas com a própria régua de mérito.
Em todo esse cenário, se o fogo do MasterChef é estável, o elenco é combustível. A 12ª temporada de Amadores entendeu isso e trouxe um casting pensado para incendiar qualquer formação de bancada — e os comentários da audiência ajudam a desenhar melhor cada figura. Na dianteira, a Dra. Daniela assume o papel de protagonista com uma regularidade rara: acumula pins, estreou uma pêra ao vinho que a colocou no estrelado, e quando precisa distribuir desvantagens, o gesto soa mais como defesa do próprio jogo do que ataque gratuito; mantendo classe e não levando pro pessoal. Ao seu redor órbita Glória (Glorinha para seus fãs), contrapeso moral da bancada: imune à condescendência, um pouco bocuda, alterna entre tropeços e brilhantismos, mas sempre muito doce.
Na outra beirada, cresce o trio das graças: Sofia, Tainã e Felipe M, um pequeno consórcio de tensão e energia mais baixa, com foco quase exclusivo na doutora e uma produção de indiretas que rende mais que a culinária. Sofia, depois de um começo ríspido, redesenhou a própria persona, suavizou o figurino e trocou a pressa por um discurso mais limpo — afinal, ela é relações-públicas. Tainã vive pedindo mão amiga na bancada, só esquece que já esteve lá quando pedem também; sem a tropa por perto, ficou mais interessante. Felipe M, publicitário de instinto teatral, ganhou fama de vigia do Lucas e talvez rendesse mais se transformasse a gracinha em flerte aberto; quando deixa o enredo de lado, mostra repertório que mistura influências e puxa a temporada para um diálogo bem-vindo com culinárias estrangeiras. Nossa Ariana tem com origens africana, japonesa, libanesa e portuguesa.

No miolo do elenco, Leonela é a comentarista não licenciada (como ela bem diz). Cozinha com competência, dá uns deslizes, mas ocupa tanto espaço nos depoimentos que faz até os figurantes parecerem mais interessantes. À sua sombra, Vitória, que nunca viu nem cozinhou nada. Então qualquer destaque positivo é lucro. Mas é simpática. Guilherme, um twink que também se destaca nas intrigas, tem um ego inversamente proporcional à idade, mas mais inflados pelos outros que por si. Fernanda encarna a árbitra: pensa o jogo em metáforas de futebol, marca impedimentos, às vezes faz gol contra, e segue devendo o lance de placa (?); os brincos temáticos de assinatura viraram piada, meu parceiro. Felipe B, o hétero sossegado do elenco, raramente erra feio e quase nunca deslumbra. Entre os figurantes, Teresa é pura doçura e pouco carisma, trocá-la por nomes mais descompensados (Salomar ou Flávia) daria mais novela, mas talvez menos cozinha. Nayara é feliz no simples — designer náutica de iates de luxo — mas também nem espanta nem encanta. E Rodrigo é a versão anual do simpático que não mostra muito, mas querido por todos, indispensável para o clima, substituível.
Pela primeira vez sem Ana Paula Padrão, o fio narrativo perdeu um cadenciamento próprio, e sobrou para a mesa de jurados equilibrar ritmo e humor, ainda se adaptando mas mexendo na memória afetiva de quem acompanhou o auge. Agora, não sabemos se por isso, também há um novo pacote de incentivos. O prêmio — R$ 350 mil, bolsa no Le Cordon Bleu, consultoria e outras coisas de cozinha que ninguém presta atenção em todo episódio — parece responder ao cansaço do formato com a força do dinheiro. É um salto em relação a temporadas anteriores e, por isso mesmo, um lembrete de que reputação não se compra no atacado. Pix maior não repõe, por si, a atmosfera de gala que já envolveu finais memoráveis; mas reequilibra a situação para quem arrisca tudo em troca de um empurrão no mundo fora do estúdio.
O entorno digital mudou, e o programa se adaptou aos empurrões. Se antes vivíamos de contagem de tweets por minuto, agora o fervor se fragmenta em ilhas: clipes, cortes, reels, tiktoks e threads dividem a mesma praça. O resultado é um barulho mais difuso, menos torrencial, que talvez diga mais sobre o público do que sobre a fadiga do formato. A exceção é a final, muitas vezes vendida como embate entre bem e mal. No balanço, essa temporada entrega credibilidade suficiente no fogão e munição suficiente para a conversa pós-episódio. Não é a melhor forma da franquia, nem pretende ser; é um capítulo competente que alterna talento, desastre e constrangimento.
Há falhas e contundências, mas a temporada é saborosa, e no fim, é isso que importa. Não o ponto da carne, nem a textura do molho, mas a insistência em transformar uma cozinha em palco de humanidade. Entre vitórias e quedas, entre cortes bem dados e maldosos, seguimos assistindo até por uma certa curiosidade antropológica e prazer culpado. Queremos saber quem aguenta o calor e, talvez sem admitir, testar nossa própria paciência com o relógio. Na próxima terça, voltamos para atualizar nossa própria régua de meritocracia televisiva.
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