O seu jogo de terror favorito provavelmente não existiria sem Resident Evil 4. É preciso dizer isso logo de cara. Na verdade, é bem provável que muitos outros gêneros não seriam os mesmos sem ele. Em 2005, a Capcom lançou o que é muito provavelmente o jogo em terceira pessoa mais influente do novo milênio, estabelecendo um padrão que seria seguido fielmente durante décadas, com apenas certo grau de variação. Pegue-o para jogar hoje mesmo (em literalmente qualquer plataforma da sua preferência) e você verá as raízes do third-person shooter, idealizadas de maneira tão clara e objetiva que é impossível não conectá-las às trocentas obras que acabou inspirando. É o tipo de texto tão fundamental que não pode ser superestimado.
Tudo isso para caracterizar o cruel trabalho dos desenvolvedores que, em 2023, tiveram de refazê-lo do zero. Afinal, como reimaginar uma obra que está ferrada à fogo na mente não apenas dos fãs, mas da própria indústria? A resposta um tanto quanto óbvia da desenvolvedora japonesa foi a de colocar na direção Kazunori Kadoi e Yasuhiro Anpo, funcionários de longa data e diretores do aclamado remake de Resident Evil 2 (2019). No entanto, diferente dos remakes anteriores e projetos como Final Fantasy VII Remake (2020), o quarto título da franquia de terror da Capcom não precisa de tantos floreios para ser considerado moderno, com apenas algumas mecânicas que poderiam ser consideradas ultrapassadas.
Na posição precária de ter que atualizar o título para audiências modernas e ao mesmo tempo preservar sua iconicidade, não é surpresa nenhuma a Divisão 1 ter sido cautelosa em sua abordagem. A aventura de Leon Kennedy pela Espanha à procura da filha do presidente dos Estados Unidos mantém a maior parte dos momentos que definiram a lenda de Resident Evil 4, contando com mais adições do que cortes. Há uma pressão latente para que todos os momentos, todas as memórias que os jogadores passaram duas décadas construindo sejam transpostas suavemente para essa nova roupagem que a série busca dar aos seus ícones. Contra todos os obstáculos, ela consegue fazer justamente isso.

Após os eventos de Resident Evil 2, Leon Kennedy (Nick Apostolides) é treinado secretamente pelo governo americano, tornando-se um agente de elite, praticamente um exército de um homem só. Quando a filha do presidente, Ashley Graham (Genevieve Buechner), é sequestrada por uma organização misteriosa operando na Europa, só há um homem capaz de achá-la. No maior estilo “resgate a princesa no castelo” (literalmente), a narrativa de Resident Evil 4 sempre foi um conto de fadas disfarçado de terror camp, com direito à cavaleiros de armadura brilhante e conflitos heroicos entre bem e mal. A mistura específica desses elementos foi tão potente que quaisquer deficiências da história acabaram sendo perdoadas pelo senso de humor afinado que Shinji Mikami (criador da franquia) emprega na sua execução.
Numa época em que o realismo é via de regra em produções AAA, tanto em gráficos quanto mecânicas, como conciliar o tom ultra brega de Resident Evil 4 com o que as audiências modernas esperam da franquia? Se por um lado o remake mantém o tom jocoso de Leon ao dar socos, pontapés e outros movimentos de luta-livre contra os habitantes infectados do vilarejo espanhol, por outro mais profundidade é dada ao seu relacionamento com as outras personagens da trama e ao seu próprio passado. Perseguido pelas memórias de Raccoon City, o Leon de 2023 vê sua atual missão como uma maneira de se expiar por seus erros e por aqueles que não conseguiu salvar. É um desenvolvimento orgânico e que casa perfeitamente tanto com o tom dos outros remakes quanto com as narrativas introduzidas na nova versão.
Talvez o elemento mais controverso do jogo original, Ashley também foi retrabalhada para ser menos um fardo e mais uma parceira na jornada de Leon batalhando contra o culto Los Iluminados. Apesar de ainda precisar ser salva de vez em quando, ela possui muito mais agência e personalidade do que sua versão original, sendo menos sexualizada pelos outros personagens e até recebendo um revamp de sua parte solo da campanha. De fato, a personagem e seu relacionamento com o protagonista são tão cativantes que até te fazem pensar em como seria bom tê-la visto novamente em entradas posteriores da franquia, tais como Resident Evil 6 (2012).

Outros personagens coadjuvantes incluem Ada Wong [Lily Gao, reprisando sua breve ponta do filme Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City (2021)], a femme fatale que assombra as memórias de Leon e uma das outras sobreviventes de Raccoon City. Ela está interessada nas Plagas, o parasita pré-histórico descoberto pelo culto e que infectou a maioria dos habitantes da região. Para isso, ela entra em contato com Luis Serra (André Peña), um ex-pesquisador da Umbrella que fugiu para a Europa após o colapso da companhia, trabalhando para Los Iluminados e estudando o parasita recém desenterrado. Um mulherengo consumado, Luis é outro personagem expandido pela nova narrativa, aparecendo bem mais vezes e auxiliando Leon e Ashley ao longo do caminho.
Enquanto os inimigos nos jogos anteriores eram os monstros grotescos criados pela Umbrella, aqui a franquia explora o fervor religioso causado pela nova arma biológica descoberta: liderados pelo maquiavélico Lorde Saddler (Christopher Jane), Los Iluminados buscam dominação mundial através do controle que seu mestre exerce sobre seus “fiéis”. Deixando o ambiente urbano de Raccoon para trás, o quarto capítulo principal da série se passa num ambiente rural. O vilarejo, uma das três áreas principais que Leon explora, parece ter parado no tempo em algum momento do século XX, e se encontra na sombra de um castelo medieval governado por Salazar (Marcio Moreno), um diminuto castelão, também servo de Saddler.
Os ganados, aqueles infectados pelo parasita, agem de maneira semelhante aos zumbis de jogos passados, mas são capazes de utilizar armas rudimentares e de seguir ordens, tornando-os armas preciosas em um mundo atento às ameaças do bioterrorismo. Conforme Leon avança, mais ele encontra variações monstruosas deles, que vão revelando mais do parasita quanto mais dano levam. Nesse ponto, o detalhe gráfico da RE Engine funciona contra a estética do jogo original, que mostrava os olhos esbugalhados dos bichos após suas cabeças explodirem, mas ainda visíveis sobre a massa de tentáculos brotando para fora. No remake, esses detalhes são perdidos no amontoado de partículas e partes em movimento toda vez que um deles “evolui”.

Avanços na qualidade de texturas e iluminação fazem do remake um jogo bem mais sombrio do que o original, confiando na lanterna de Leon para iluminar as superfícies e revelar seus detalhes minuciosos. A última iteração da RE Engine traz o mundo de Resident Evil 4 de volta dos mortos com aproveitamento ótimo, recriando o salto em escala de títulos anteriores para o mundo relativamente aberto da nova aventura. Os cenários exteriores em particular contrastam com as ruas sufocadas e os corredores estreitos de Raccoon City. A variedade é a rainha da apresentação do jogo: justo quando você acha que Resident Evil 4 jogou sua última carta, ele te surpreende. É uma experiência que você gostaria que não tivesse fim.
Talvez a diferença mais gritante entre o jogo de 2005 e o de 2023 seja a agilidade de seu protagonista. Enquanto no original Leon e os outros personagens jogáveis eram obrigados à parar para atirar, agora eles são capazes de se mover pelo cenário e realizar outras ações enquanto alvejam os infectados com chumbo quente. A mudança principal que ancora essa nova abordagem é o uso da faca de combate, que aqui pode ser usada para aparar uma série de ataques, salvar Leon de um inimigo que o agarra e de impedir que um ganado se transforme numa versão mais forte. É um item de utilidade ímpar, mas durabilidade limitada, forçando o jogador à regular o seu uso.
Pode parecer algo pequeno, mas as mudanças feitas neste item refletem a filosofia do remake de Resident Evil 4: expandir ao invés de apenas recriar. Não é uma experiência que parece acorrentada às expectativas de seu antecessor, mas sim incentivada pelo legado que carrega. Não há um único passo da aventura de Leon que não tenha sido examinado aos mínimos detalhes durante os anos, e os desenvolvedores sabem disso. Todas as mudanças feitas não tem o intuito de repudiar o jogo original, mas de elevar o seu potencial. Enquanto a ideia de um remake de RE4 poderia parecer uma desculpa gananciosa para não investir em novas ideias, sua realidade é uma obra repleta de amor e reverência não apenas ao jogo em si, mas à toda a história da franquia.

Não é sem motivo que tantos dos elementos originais de Resident Evil 4 são considerados clássicos: o loop de gameplay permanece tão viciante quanto duas décadas atrás, misturando os elementos que dão identidade à franquia com uma série de mudanças que priorizam a ação momento-a-momento. Além de contar com os itens que encontra pelo cenário, Leon interage com a figura misteriosa do Mercador (Michael Adamthwaite), um vendedor que oferece uma série de itens em troca de pesetas, a moeda da região. Os inimigos derrotados deixam pequenas quantidades desse valor, mas os tesouros que encontramos ao longo da aventura podem ser vendidos em troca de altas somas. Além disso, o personagem também oferece serviços, as boas e velhas side quests, em troca de espinélios, um outro tipo de moeda usado em troca de itens especiais.
Enquanto a escassez era o inimigo de outros jogos da série, Resident Evil 4 transforma o manejamento de recursos em um minigame próprio, visualizando os itens do jogador através do sistema da maleta: você tem um espaço retangular limitado para encaixar todos os seus itens. Todos os itens lá podem ser rotacionados e movidos para qualquer lado. É quase terapêutico poder parar em qualquer momento do jogo e poder reorganizar os itens para obter mais espaço onde colocar mais coisas. O tamanho da maleta pode ser aumentado através do Mercador, que também pode melhorar diversos aspectos das armas de Leon, como dano, capacidade de carga e velocidade de recarregamento.
Até mesmo ao atualizar esses sistemas icônicos do título original, o remake de Resident Evil 4 insere suas pequenas mudanças que contribuem para a modernização da jogabilidade. Tudo que antes era estático agora é dinâmico e esse foco na agilidade transforma a maneira com que nos relacionamos com o jogo. Num exemplo fascinante de retroalimentação cultural, várias dessas mudanças remetem não apenas aos jogos anteriores e posteriores da série, mas de expoentes contemporâneos que foram eles mesmos inspirados por Resident Evil 4. A possibilidade de ações furtivas e de atalhos para armas customizáveis especialmente remetem à estética de The Last of Us, talvez o jogo de zumbi mais influente da última geração.

Após o lançamento em março de 2023, Resident Evil 4 recebeu duas grandes adições de conteúdo: o famoso modo Mercenários, onde jogadores controlam uma série de personagens enquanto lutam contra as hordas de ganados em diversos mapas e Caminhos Distintos, uma campanha alternativa pela perspectiva de Ada, que interage indiretamente com Leon durante a história principal.
Mercenários não é apenas uma maneira divertida de experimentar com as diversas armas e mecânicas do jogo, mas também um jeito excelente de se preparar para jogar em dificuldades maiores. Assim como seus antecessores, RE4 incentiva você a se tornar mestre de todas as suas arapucas, decorando a estratégia necessária para dar cabo dos inimigos usando o mínimo de recursos possíveis. Após terminar a campanha, o jogo te dá uma nota baseada em seu relógio interno e no número de saves que você fez durante os 16 capítulos.
O mesmo se aplica à Caminhos Distintos, que dura cerca de 6 horas, cobrindo todos os eventos do jogo. Ada, interpretada com sobriedade por Gao, age sob as ordens de Albert Wesker (Craig Burnatowski), grande vilão da franquia e antagonista principal de Resident Evil 5 (já dando esperanças de outro possível remake). Apesar de revisitar vários dos cenários da narrativa principal, a DLC introduz vários dos segmentos que foram cortados do original e investe num gameplay ainda mais ágil que o de Leon, com Ada fazendo uso de um gancho mecânico para se locomover e alcançar inimigos em grandes distâncias. Sendo vendida separadamente por um preço razoável, ela foi incluída na edição Gold do jogo, lançada em fevereiro de 2024.

Ao longo de sua narrativa, Resident Evil 4 sutilmente reitera uma simples pergunta: as pessoas são capazes de mudar? Leon faz esse questionamento à Ada enquanto os dois viajam de barco até a ilha que é palco do embate climático do terceiro ato do jogo. Após a destruição de Raccoon City, ele explica, o mundo mudou. De repente, milhares de vidas são sacrificadas ao se salvar apenas uma. Leon teme ter se tornado alguém fundamentalmente diferente de quem era, e o jogo abre espaço para essa indagação na própria abertura, em que o personagem conversa desgostosamente com dois policiais que o levam à região. Afinal, se o policial dentro dele morreu nas cinzas de Raccoon, o que sobrou?
Ada responde categoricamente: “Você não mudou nada. Só acha que mudou.” Vários dos personagens passam a narrativa se sentindo culpados pelos erros do passado, mas a tese central de Resident Evil 4 parece ser a de que as pessoas em si não mudam, mas apenas se revelam. Seis anos depois do surto do G-Vírus, Leon não é mais o mesmo idealista ingênuo, mas ainda busca salvar todos que pode. Luis, obcecado em achar um meio para reparar sua pesquisa sobre Las Plagas e o mal que ela libertou, também encontra em Leon e Ashley uma certa forma de redenção. Ada, a profissional ultra-competente, pondera sobre os mesmos eventos que Leon, se perguntando se basta receber ordens ou se está na hora de ter alguma agência em sua própria história.
Sobre essa mesma perspectiva, Resident Evil 4 não mudou nesses últimos 20 anos, não de verdade. Apesar de estranharmos algumas de suas mecânicas, seu tom ou sua narrativa, a sua alma peculiar continua tão viva como era em 2005, e o remake é apenas um novo lembrete. O tempo serviu apenas para revelar a obra-prima da Capcom mais uma vez, ainda mais divertida e viciante do que antes, mas sem esquecer daquilo que a fez ser inesquecível.

Resident Evil 4 teve um dos desenvolvimentos mais fascinantes da história dos videogames, passando por não menos de quatro versões antes de Shinji Mikami ter tomado as rédeas da franquia que ele mesmo criou, reinventando-a no processo. Uma dessas versões, desenvolvida pelo visionário Hideki Kamiya, se tornaria a série Devil May Cry, outro carro-chefe da desenvolvedora que volta e meia também se renova com estilo. Ainda hoje é possível ver, nos genes de RE4, as raízes de tal estilo.
É um pequeno milagre que Resident Evil 4 exista como o conhecemos, e é um milagre talvez ainda maior que seu remake tenha reproduzido tão fielmente a experiência de pisar no vilarejo pela primeira vez, o primeiro encontro mórbido contra os Regeneradores, a boss fight contra o Major Krauser (Mike Kovac) ou um zilhão de outros momentos tão marcantes quanto esses. É um jogo que ultrapassa a barreira do survival horror e se torna obrigatório para entender a evolução dos videogames num nível essencial. Mesmo após duas décadas de influência e imitadores, Resident Evil 4 continua numa liga inteiramente sua.
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