Apocalipse nos Trópicos e a história de um Brasil que ruiu em seu próprio deus

Sucedendo o fenômeno de Democracia em Vertigem, o novo documentário de Petra Costa integra a seleção da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, depois de uma estreia badalada em Veneza e no Festival do Rio

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Cinco anos atrás, o contexto político brasileiro pós-2016 era exportado para o resto do mundo por meio do trabalho documental de uma cineasta brasileira ainda um tanto novata, que dedicou os esforços de seu segundo longa-metragem à ingrata história recente do Brasil. Hoje, após uma indicação ao Oscar e um infame mandato presidencial que marcou o país, Petra Costa retorna ao ambiente que lhe condecorou para escolher dentro dele um novo recorte, parte fundamental para a compreensão da Democracia em Vertigem que ela se propôs a reportar em 2019.

Em Apocalipse nos Trópicos, o objeto é a relação íntima que a política brasileira institucionalizada construiu com o cristianismo protestante no Brasil, principalmente ao longo dos últimos quinze anos. Mais como um apêndice do que necessariamente uma continuação do anterior, o filme recorta e amplia a visão de um fenômeno em específico, que, ao contrário das tendências mundiais de secularidade e da noção de mundo laica que marcou as esperanças de um tempo lembrado pela conquista da Constituição Cidadã de 1988, revela um país cada vez mais influenciado pelo moralismo do cristianismo evangélico. 

Há 40 anos, o movimento representava pouco mais de 5% da população do país, mas hoje, já passa dos 30% . Trata-se, como a característica narração em off de Petra Costa ressalta, de uma das mais rápidas transformações demográficas, religiosas e culturais da história. Um tipo de mudança que, a exemplo da experiência de países fervorosamente religiosos, eleva a discussão para além da mera laicidade do Estado, apresentando, inevitavelmente, profundos embates e desafios para a divisão democrática de poderes e a separação entre Igreja e Estado. 

O filme conta com a participação da ativista e economista brasileira Alessandra Orofino no roteiro e na produção, estação que, além da própria diretora, ainda leva o nome de Brad Pitt  (Foto: Busca Vida Filmes )

A diretora amplia o escopo de seus registros privilegiados dos “bastidores do poder”, alguns conservados desde as gravações de Democracia em Vertigem a partir das revoltas populares de junho 2016, outros a partir da ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018, por meio de uma eleição financeira e moralmente financiada pelas maiores lideranças evangélicas do país. Compreendendo a catastrófica gestão da pandemia de Covid-19 a partir de seu primeiro ano de mandato, até o período da eleição que o desapossou com o retorno de Luiz Inácio (Lula) da Silva em 2022, novos personagens são adicionados, assim como uma nova capacidade analítica de Petra Costa, que entende o pastor e televangelista Silas Malafaia como peça central na articulação política do país.

Diante da figura, mais influente e duradoura do que muitos dos indivíduos que ele elege como representantes do “mundo evangélico” nas instituições democráticas, a diretora é certeira em entender que o real poder político é criado bem longe das sedes imponentes e modernas de Brasília, tão valorizadas pelas suas câmeras inquisitivas. É assim que o seu tradicional roteiro em primeira pessoa ganha novos contornos: ao invés de ensaiar uma aproximação pessoal com o contexto macro, fórmula de sucesso e diferenciação de Democracia em Vertigem, Costa faz o movimento contrário e identifica seu desentendimento com seu próprio contexto de origem.

Como um exemplo que foge à regra da maioria dos domicílios brasileiros, a voz narrativa de Apocalipse nos Trópicos confessa sua própria ignorância ante à noção espiritual do país e os ensinamentos religiosos, consequência de uma educação familiar secular, e traça um caminho de aprendizado sobre a fé cristã, abençoada por uma Bíblia recebida pelo pastor, ex-deputado e candidato à Presidência em 2018, Cabo Daciolo, que lhe entrega o livro sagrado com uma espécie de alerta e orientação ideológica: “A nossa guerra não é contra homens, a guerra é espiritual”. 

Assim como Democracia em Vertigem, o longa tem duas versões: a original, em português, e uma secundária, narrada em língua inglesa, numa estratégia clara de promoção do filme para o público internacional, tão desfeito às legendas (Foto: Busca Vida Filmes)

À medida que a orientação narrativa de Petra se aprofunda nas escrituras e se infiltra no cotidiano íntimo dos líderes religiosos, o filme presencia episódios quase proféticos. Com recursos de um roteiro dividido em capítulos e efeitos de uma montagem que se vale da aproximação que a religião conserva também com a própria arte, cenas em que Silas Malafaia explode em raiva enquanto dita seus ensinamentos sobre Jesus dentro de sua BMW, ou que orgulhosamente expõe suas estratégias políticas dentro de jatinhos particulares milionários, aproximam Apocalipse nos Trópicos do entendimento basilar de que alguns desses líderes são muito mais guiados pela própria atração mundana ao poder e ao dinheiro do que pela palavra de Deus, como defendem ser.

Há um conflito essencialmente identitário, no entanto: esse “mundo evangélico” tão politicamente poderoso e ideologicamente disputado, é composto, em sua maioria, por cidadãos periféricos, mulheres negras, famílias pobres e mães solteiras. Por óbvio, é justamente essa parcela da população o alvo da chamada “teologia da prosperidade”, uma inclinação ideológica-religiosa que exalta a obtenção de bens materiais e o discurso meritocrático, ao mesmo tempo que incentiva doações exorbitantes e sacrifícios financeiros dos fiéis para a Igreja – lógica que beneficia muito mais seus líderes do que qualquer fiel da classe trabalhadora. 

A exploração da vulnerabilidade dos fiéis em prol dos interesses de uma minoria dominante é, inclusive, o que impulsiona o surgimento do evangelismo no Brasil. Com a aproximação da Igreja Católica às ideologias de esquerda na América do Sul, como forma de resistência à repressão das ditaduras militares dos anos 1960, instituições protestantes dos EUA iniciam uma série de encontros evangelísticos com participação popular massiva pelo país. Protagonizados por figuras de grande visibilidade, como o televangelista Billy Graham, esses movimentos, autodenominados ‘cruzadas’, incentivaram a expansão do cristianismo evangélico como instrumento de propagação do anticomunismo e de manutenção da ordem militar repressiva, importante aliada da hegemonia capitalista à época.

A identidade experimental, ensaística e personalista do cinema documental de Petra Costa chama a atenção da crítica mundial desde seu primeiro longa-metragem, a não ficção Elena (2012) [Foto: Busca Vida Filmes]

Torna-se quase óbvia — ainda que não menos necessária — a aproximação entre eventos como o atentado terrorista em Brasília de 2023 e a invasão ao Capitólio dos EUA, em 2022, que, inevitavelmente, sugerem a própria figura de Bolsonaro como uma versão escrachada e latino-americana de tiranos conservadores do norte global. O Brasil ainda tem um longo passado pela frente, e são construções estéticas como essa que refinam a linguagem e a experiência oferecida em Democracia em Vertigem, ao mesmo tempo em que mantêm o trabalho documental de Petra Costa mais próximo de um experimento de divulgação do que propriamente uma manifestação intelectual voltada à nação que o protagoniza.

E o fim de parte da história com a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022 não é entendido como uma vitória do bem sobre o mal – num efeito curioso pois, aos olhos do fundamentalismo religioso, o novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva representa exatamente o oposto. O “Messias” se foi, mas deixou um legado de destruição e o legislativo mais conservador do Brasil desde a sua redemocratização. “Não há nada encoberto que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a ser conhecido“, profetiza o evangelho de Lucas, numa chance que o filme traz de compreendermos o real significado de um “apocalipse” – este que não é como um fim, mas sim uma oportunidade transcendental de revelação.

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