A noite ainda é jovem em Castlevania: Noturno

Reinvenção tanto da franquia de videogames quanto da série animada original, Noturno apresenta uma sinfonia só sua

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Um noturno é, na tradição musical, um tipo de composição que evoca ou é influenciada por sentimentos ligados à noite, com alguns até mesmo reproduzindo os sons das criaturas que costumamos escutar depois que o Sol se põe. A franquia Castlevania, lar de títulos tão melódicos quanto Sinfonia da Noite e Ária do Sofrimento, se presta muito bem à alegorias musicais, o que é apenas enfatizado em Castlevania: Noturno, a nova série da Netflix e sequência da adaptação animada dos videogames, encerrada em 2021.

Produzida pelo estúdio Powerhouse, a continuação começa séculos após o encerramento da série original, desta vez adaptando os personagens do jogo Castlevania: Rondo of Blood. Richter (Edward Bluemel), último descendente do clã Belmont, é um jovem arrogante e carismático que vive em Machecoul, na França, junto de Maria (Pixie Davies) e sua mãe, Tera (Nastassja Kinski), continuando a tradição familiar de matar mortos-vivos enquanto a recente onda revolucionária varre a Europa. Após rumores de que uma Messias Vampira está chegando para rechaçar essa onda e drenar o mundo de sangue, ele une forças com Annette (Thuso Mbedu) e Edouard (Sydney James Harcourt), dois rebeldes da colônia francesa de Saint-Domingue (que posteriormente viria a ser o Haiti), dando início à uma nova e intensa caçada.

Trailer da primeira temporada de Castlevania: Noturno, orquestrado por uma versão remixada da faixa Divine Bloodlines

Com a saída do roteirista Warren Ellis, criador da série original, Castlevania: Noturno tinha claramente que encontrar um novo ritmo e uma nova abordagem para se diferenciar de sua predecessora. Enquanto a Castlevania de Ellis foi caracterizada por um mundo cínico e desolador, povoado por personagens batidos e exaustos, a nova produção chega pela via oposta e conta uma história sobre heróis esperançosos pelo futuro, cheios daquela confiança únicamente encontrada na flor da juventude. Diferente de Trevor (Richard Armitage), Sypha (Alejandra Reynoso) e Alucard (James Callis), que já iniciam sua jornada como adultos capazes, grande parte do tempo de Noturno se dedica ao crescimento emocional de Richter e seus aliados, constantemente confrontados por suas próprias falhas e dúvidas ao longo dos oito episódios da produção.

A aparente arrogância de Richter mascara o luto profundo que o rapaz sente por sua mãe, assassinada na sua frente pelo vampiro Olrox (Zahn McClarnon), nove anos antes dos acontecimentos de Noturno. Além de afetá-lo psicologicamente, o trauma dessa perda também o rendeu incapaz de conjurar magia, o que torna tangível o conflito interno do personagem nas formosas e violentas cenas de ação do seriado, que continuam servindo um banquete de sangue e caracterização em doses generosas.

A magia serve para conectar Richter não só com a memória de sua mãe, mas com sua antepassada, Sypha, que introduziu essa capacidade na linhagem dos Belmont séculos antes, efetivamente conectando as duas séries. Podemos facilmente traçar o arco de reconexão com o feminino pelo qual Richter deve passar logo nos primeiros capítulos (não é acidente grande parte do elenco secundário ser composto por mulheres), mas Castlevania: Noturno consegue atingir grandes alturas quando simplesmente permite que seu protagonista chore e desabe quando confrontado pelo peso de seus erros, produzindo alguns dos momentos mais catárticos de ambos os seriados no processo.

Cena da primeira temporada de Castlevania: Noturno. Richter (Edward Bluemel) termina de amarrar uma bandana branca em volta de sua testa. Richter é um jovem caucasiano de cabelos castanhos e curtos, olhos azuis e expressão decidida. Podemos ver a gola azul de seu casaco e detalhes pretos atravessando seus ombros. Suas mãos estão cobertas por luvas pretas sem dedos, ambas erguidas e abertas, soltando a bandana branca que agora cobre sua testa. Atrás dele vemos labaredas azuis cobrindo o fundo da imagem, com algumas fagulhas em sua frente.
Novos heróis se erguem contra o mal (Foto: Netflix)

Annette e Edouard são frequentemente os catalisadores dos temas de revolução e liberdade abordados por Castlevania: Noturno. O terceiro episódio, intitulado “A liberdade era mais doce”, escrito pela documentarista Zodwa Nyoni, se dedica quase exclusivamente a um flashback prolongado que narra o passado dos dois e sua influência na Revolução Haitiana. Carinho especial se dá à conexão de Annette com a magia de seus ancestrais e como a luta atual pela libertação ecoa na história, atravessando o tempo e o espaço. Edouard, por outro lado, é um homem livre com uma voz de veludo que escolheu usar sua influência para auxiliar escravos foragidos a escapar. Os maravilhosos vocais de Harcourt são utilizados diegeticamente para completar a musicalidade da produção, permeando a rigidez e crueldade do mundo com uma melancolia doce, mas ainda sólida.

Assim como Isaac (Adetokumboh M’Cormack) na série original, Annette é uma personagem dos jogos que foi completamente retrabalhada para habitar a série, mudando tanto sua etnia quanto sua urgência na trama (em Rondo of Blood ela é a namorada de Richter, sequestrada por Drácula e aprisionada em seu castelo para motivar o jovem herói). Sua presença ajuda não apenas a diversificar o elenco, mas também a expandir o escopo da mitologia de Castlevania de maneiras que a primeira série apenas aludiu. Noturno conta uma narrativa global com personagens globais, saltando graciosamente entre continentes e permitindo que a audiência tenha uma compreensão ampla do mundo e o lugar que seus personagens ocupam nele.

Como todo bom gótico, Castlevania: Noturno encaixa boa parte de sua ficção no período histórico em que se passa, mesclando o embate entre vampiros e humanos no contexto revolucionário que praticamente definiu o século XVIII. Não são metáforas particularmente novas ou sutis, comparando os chupadores de sangue com a classe aristocrática obcecada com a pureza de seu próprio sangue, mas o roteiro da produção é sagaz o suficiente para se render à fantasia e deixar o enredo falar por si só quando necessário, usando situações e personagens para elevar sua atmosfera. Erzsebet Bathory (Franka Potente), a tão aguardada Messias Vampira, é uma vilã servível nessa primeira temporada, mas que ganha contornos diferentes quando descobrimos a lenda da “Condessa Drácula” que inspira a personagem e sua crueldade peculiar.

Cena da primeira temporada de Castlevania: Noturno. Drolta (Elarica Johnson) e Annette (Thuso Mbedu) lutam em uma masmorra iluminada pela luz de tochas. Annette, à direita, é uma mulher preta de cabelos curtos e pretos, amarrados em dreadlocks e ornados por anéis dourados. Ela usa um colete amarelo por cima de uma camisa branca, calças pretas e botas marrons. Em sua cintura, está amarrado um lenço carmesim decorado com faixas pretas, azuis e amarelas. Annette segura duas espadas prateadas, lançando-as ao mesmo tempo contra o lado direito de Drolta. Drolta, à esquerda, é uma vampira de pele preta, segurando as lâminas que Annette com suas unhas longas e afiadas. Ela tem um cabelo longo e cacheado, rosa nas pontas e preto na raiz. Ela usa um colete acobreado e botas da mesma cor, cobrindo sua calça cinza. Seus braços estão envoltos nas mangas de uma capa que se estende atrás dela, preta por fora e rosa por dentro, com linhas verticais pretas atravessando seu interior. Atrás delas, podemos ver uma parede de pedras com colunas quadradas suportando tochas acesas.
A nova série honra o legado de ação fluida e combates épicos da animação anterior (Foto: Netflix)

Com menos presença nessa temporada do que Drácula (Graham McTavish) ou Carmilla (Jaime Murray) tiveram na série anterior, Erzsebet cede o antagonismo de Castlevania: Noturno à sua tenente-mor, Drolta Tzuentes (Elarica Johnson), uma vampira cujo maior poder parece ser seu impecável senso de moda. Servindo looks cada vez mais ousados ao longo dos oito capítulos, o carisma da personagem parece exclusivamente centrado na capacidade dos animadores da Powerhouse de tornar cada um de seus movimentos no maior espetáculo visual possível. Chega a ser uma pena que a personagem nunca forneça substância que vá além da devoção à sua mestra, pelo menos nesse primeiro ano.

Em Machecoul, a Revolução é ameaçada pela presença do Abade (Richard Dormer), um líder religioso com filosofias conflitantes, lentamente expondo a hipocrisia de suas ações conforme estas se tornam cada vez mais radicais. Um dos personagens mais bem realizados da série, sua trama ecoa a ótima Missa da Meia-Noite de Mike Flanagan, nos fazendo refletir como homens tementes a Deus são capazes de distorcer a Sua imagem para adequá-la ao mundo monstruoso em que vivem. Fio condutor de um dos momentos mais chocantes da temporada, é um arco narrativo que promete bastante para o futuro da produção.

O vampiro azteca Olrox é um dos primeiros personagens apresentados, mas Castlevania: Noturno tem o bom senso de mantê-lo separado de Richter durante boa parte da duração, salvando o reencontro para o ponto de virada da temporada. Desse modo, a maior parte de seu tempo de tela se passa na companhia de Mizrak (Aaron Neil), um dos cavaleiros jurados ao Abade e cúmplice relutante em seus esquemas. Os dois rapidamente deixam suas diferenças de lado e começam a dormir juntos, momentos em que a série aproveita a intimidade fácil e descomplicada entre estranhos para ter alguns de seus diálogos mais reveladores e incisivos sobre fé, amor e devoção.

Cena da primeira temporada de Castlevania: Noturno. Olrox (Zahn McClarnon) abraça Mizrak (Aaron Neil) por trás, segurando delicadamente seus ombros. Olrox é um vampiro azteca de pele marrom. Seu cabelo castanho é liso e longo, trançado em uma parte próxima à sua orelha esquerda. Suas orelhas são longas e afiadas, e na sua esquerda podemos ver um pingente dourado com uma pedra verde acorrentado em seu lóbulo, enquanto um brinco dourado e fino, adornado com uma pedra vermelha se pendura na ponta da orelha. Ele não parece vestir nada, e conseguimos ver seu peito nu enquanto ele se aproxima do companheiro. Mizrak é um homem de pele marrom musculoso, com cabelos muito curtos e barba negra, usando uma cota de malha prateada. Ele olha para a esquerda, olhando para o lado oposto de Olrox.
Apesar de ser uma animação ocidental, Castlevania: Noturno puxa muitos traços nativos de animes (Foto: Netflix)

Todos os caminhos convergem no episódio final da temporada que, quebrando a tradição do seriado anterior, encontra seu clímax bem na última cena. Durante a supervisão de Warren Ellis, a maioria das temporadas tinha seu clímax no penúltimo capítulo, enquanto o final era reservado para reflexões sobre o futuro e um respiro para os personagens. Noturno não oferece tal resolução aos seus personagens, que terminam quase tão perdidos quanto começaram, só que agora um pouco mais conscientes de sua própria falta de direção. Apesar da confirmação de que uma nova leva de episódios já está em produção, não há como negar a frustração que a série deixa em sua partida, aliviada apenas por uma participação especial que arranca sorrisos sinceros dos fãs da série original.

Castlevania: Noturno satisfaz o alto padrão de qualidade que esperamos da série e se prova uma sucessora à altura da sinfonia sangrenta iniciada em 2017. Apresentando um novo elenco de personagens interessantes e um subtexto denso, a nova iteração da franquia entrega tudo o que promete, mesmo que se arrisque com um final anticlimático. Com a previsão de uma nova temporada em janeiro de 2025, a noite parece estar apenas começando.

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